“O Íris também é Brasil.”
Essa coluna nasceu assim que comecei a ministrar as aulas de Direção de Atores para a Área de Concentração em Cinema e audiovisual da UFBA, em agosto último. Pelo programa iniciaria as aulas falando sobre o texto, essa máquina esburacada e preguiçosa, como ensinaria Umbeto Eco em seu “Lector in fabula”, na verdade um “entremeado de espaços brancos, de interstícios a serem preenchidos (…) porque um texto é um mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu (...) Todo texto quer que alguém o ajude a funcionar”.
Assim, um dos elementos constitutivos da leitura teatral é que se trata de um processo de construção de sentido. Isso quer dizer que as experiências lingüísticas e de vida, as crenças e a visão de mundo do leitor, seu conhecimento prévio do texto e até mesmo sua intenção no momento (o conhecido) vão ter uma influência direta sobre a sua compreensão do texto (o novo). E o que havia escolhido para o exercício, fora um pequeno texto de La pasta, autor que trabalhei no meu Pós-Doutoramento. O principal tema tratado pelo autor emsua produção é a cidade contemporânea e, essencialmente, o “desejo” entre pessoas do mesmo sexo.
Como desaparecer completamente apresenta dois personagens num encontro casual num cinema, mas não num cinema comum, um cinema daqueles típicos em grandes centros urbanos destinados ao sexo esporádico e isso fez uma tremenda confusão na cabeça dos alunos, que desconheciam a existência de lugares como esse. Apresentei, então, algumas características desse espaço, mas gostaria de completar aqui a tal explicação, fazendo a transcrição de trecho do livro Primeira carta aos andróginos, de Aguinaldo Silva, autor que, antes de se vender à higienização gay, contribui muito para sua cartografia da abjeção. Eis o trecho.
“O cinema fica na Rua da Carioca, uma rua meio sórdida que desemboca na Praça Tiradentes, sempre esburacada e em obras, e com prédios velhos e decadentes, a maioria sobrados dos primeiros anos do século XX, época em que o Íris foi inaugurado. Quem o vê de fora em dias de sessões contínuas imagina uma colméia: na sala de espera, pelas escadas de frisos art-nouveau que levam aos seus dois balcões, multiplicados ao infinito pelo que ainda resta de sua decoração de espelhos emoldurados em bronze, os espectadores se movimentam num vaivém constante. Os sinais, as palavras amistosas que trocam entre si, indicam que a maioria se conhece, provavelmente dali mesmo. À entrada, um funcionário permanece indiferente aos que entram e saem. Na bonbonnière uma mulher cochila, enquanto, sobre o vidro do mostruário, um gato acompanha, apenas com um olho aberto, o entra-e-sai de pessoas da sala de projeção. A decadência irreversível em que entrou o cinema vai aos poucos, tomando conta do seu hall, que já foi elegante com seus frisos e corrimãos trabalhados, e seus espelhos que o tempo esfumaçou.
Quando cheguei lá naquela noite o cartaz à entrada anunciava Kung Fu Contra os filhos do Karatê e Eu Dou o que Ela Gosta em sessão dupla. Dentro da sala de projeção o movimento era igual ao do hall: havia muitas pessoas sentadas, mas a maioria permanecia de pé, ou circulava pelos corredores. Ao tentar me acostumar com a escuridão, tateando com a ponta dos dedos na cortina que cobria a parede dos fundos, tive a primeira surpresa: por trás dela, sob o toque dos meus dedos, uma súbita movimentação indicava que ali, escondidas entre o tecido e a parede, havia duas, três, quatro, cinco, talvez uma dezena de pessoas, amontoadas umas contra as outras. Mais alguns passos pelo corredor escuro e pude ver, sob a luz avermelhada que indicava “Homens”, um homem fardado a esmagar contra a parede um vulto que gemia e praguejava palavras impublicáveis.
Mas era no banheiro que eu pretendia colher a minha preciosidade — a frase citada pelo bancário Alex. Para chegar lá, tinha que caminhar até o fim através do longo corredor, entre as filas de cadeiras e as paredes. Uma outra luz vermelha, lá no fundo, indicava a porta: “Homens”. Tentei abri-la, mas como se adivinhasse meu gesto, alguém do lado de dentro se antecipou — uma bicha alta e negra, que foi logo anunciando:
“Eu sou a porteira”.
Passei por ela, subi dois degraus que me pareceram o pórtico do próprio inferno, e no último deles divisei com esforço — através das ondas de fumaça de cigarros que o brilho amarelado da lâmpada de quarenta velas mal conseguia atravessar — o banheiro de homens do Cinema Íris.
Era apenas um corredor no qual se comprimiam umas trinta pessoas. Os três mictórios eram usados ao mesmo tempo por seis, oito, dez homens que se manipulavam friamente, que se olhavam e se apalpavam e se examinavam com uma tranqüilidade, uma curiosidade quase científica. Dos três banheiros, dois tinham as portas fechadas, e deles vinham estranhos ruídos — suspiros, lamentos, cantigas de ninar, roncos, uivos, gritos, imprecações. O terceiro, com a porta aberta, mas igualmente ocupado, era palco de uma cena que atraíra vários curiosos. A fumaça, os sons, a luz amarelada, o rosto impassível das pessoas — tudo isso me assustou, e eu já pensava em recuar, voltar ainda dos degraus e fugir dali. Mas a porteira, que acompanhava cada um dos meus passos, já se postara habilmente contra a porta, e quando me voltei ela disse numa voz sibilante:
“Pode entrar, meu bem. Não tenha medo.”
Fiz o que ela mandava. Avancei mais dois passos, enquanto os que tragavam tranqüilamente seus cigarros encostados às paredes me acompanhavam com seus olhares impassíveis. Foi aí que eu senti pela primeira vez o odor dos banheiros do Cinema Íris. Só sentira um cheiro igual uma vez, no necrotério do Recife. Era cheiro de cadáver: de morte. Na metade do caminho ainda parei, as pernas trêmulas, e olhei para trás, mas a porteira, sempre à entrada, cresceu de repente contra mim, seus olhos faiscaram num ódio súbito e ela perguntou:
“Como é? Você se decide ou não?”
Avancei. Ultrapassei a barreira esfumaçada e fétida das duas primeiras portas e cheguei, afinal, à roda de curiosos que, amontoados diante da última, assistiam ao espetáculo que eu agora também via enquanto me comprimia contra eles: lá dentro, as calças nos tornozelos, dois homens se roçavam um contra o outro, e o faziam furiosamente, quase com raiva, enquanto gemiam, gritavam, soltavam pragas e diziam palavrões, alheios á roda de curiosos que tinha os olhos fixos na cena. Enquanto a náusea, começava a crescer dentro de mim (ela viria mais tarde, para desespero da porteira, que me ajudaria a vomitar e me chamaria ternamente de debutante), eu tentava inutilmente desviar meus olhos da incrível cena. Mas meus olhos vagavam sem rumo, passavam pela privada que tinha uma parte das bordas quebrada, iam até a caixa de descarga, subiam pela parede, e no canto à esquerda, bem no alto — em letras maiores que aquelas usadas para escrever a atormentada literatura dos banheiros do cinema —, encontravam afinal a frase — que àquela altura a mim já não dizia nada: negras, enormes, escritas por uma mão firme e decidida, as letras informavam: “O Íris também é Brasil.”
Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.