Quebrando Tabus.
A legalização da maconha é um tema da contemporaneidade que está gerando fortes discussões na sociedade ocidental. Nos últimos anos, estas discussões chegaram ao Brasil. Organizaram-se marchas em prol da legalização do uso pessoal da cannabis, ex-presidentes, acadêmicos e outras personalidades destacadas da política brasileira passaram a debater publicamente os efeitos da atual política proibicionista. Tendo estes elementos em voga, nossa coluna entrevistou Luísa Saad, pesquisadora da Universidade Federal da Bahia, cuja dissertação de mestrado aborda a associação entre os discursos referentes as teorias raciais introduzidas no Brasil, durante o século XIX, e o uso da cannabis sativa.
Diogo: Olá Luísa, muito obrigado pela disponibilidade em dar esta entrevista.
A historiografia brasileira tem posições discordantes ao que diz respeito à entrada da maconha no Brasil. Como este debate está sendo travado na contemporaneidade?
Luísa: Olá, Diogo, agradeço o convite.
Não há nada muito exato sobre a entrada da maconha no Brasil. Pesquisadores do início do século XIX defendiam a ideia de que a maconha havia chegado no Brasil nos primeiros navios negreiros, trazida pelos escravos. Outros mais contemporâneos já questionaram essa possibilidade argumentando que os escravos viajavam em condições precárias e sem aviso prévio. A meu ver, a maconha pode ter chegado nos primeiros navios negreiros sim, mas nada impede que tenha sido trazida por outras figuras, como tripulantes, passageiros ou traficantes que, sem dúvida, viajavam em melhores condições. O fundamental desse assunto todo é perceber que essa associação feita entre a maconha e os escravos foi o que deu todo o suporte para que se formasse o discurso proibicionista sobre a planta. Médicos e naturalistas do início do XIX – sob influência das teorias racialistas (e racistas) que ferviam na Europa desde a segunda metade do século XVIII – passaram a relacionar características raciais a ações desviantes. Nesse caso, o negro – inferior, degenerado, infantil, animalesco – e a maconha – portal para a criminalidade, para a loucura e para a morte.
Diogo: Fale um pouco da sua pesquisa.Luísa: Minha pesquisa é voltada para o período que antecede a proibição da maconha, em 1932. O que me interessa é o processo de formação dos discursos que foram sendo socialmente incorporados ao longo da Primeira República. As teorias raciais de fim do XIX encontraram um terreno mais do que acolhedor no Brasil: fim da escravidão, crescimento das cidades – e, consequentemente, das doenças, dos crimes – e, principalmente, uma república recém-proclamada que almejava ser moderna e exemplar. Nada mais coerente do que buscar soluções que tinham seus problemas na composição racial da sociedade, altamente miscigenada. Os costumes e práticas dos negros passaram a sofrer intensa perseguição, tudo entrava num balaio só: negros, maconha, capoeira, candomblé, vadiagem, criminalidade. A associação da maconha com o candomblé, em especial, chama a atenção: há indícios de que a maconha realmente fizesse parte do candomblé, inclusive é indicada como planta de Exu. Entretanto, pouco há na bibliografia sobre esse assunto e a dificuldade em se pesquisar mais a fundo o candomblé e essa questão tão delicada nos deixam com diversas interrogações. Teria a maconha sido retirada dos cultos afro-brasileiros como uma estratégia para facilitar a aceitação dessas religiões? Aliás, teria sido retirada a maconha desses cultos? Difícil é achar figuras de dentro dessas comunidades religiosas que queiram ou possam falar sobre isso, rs. De qualquer forma, o silêncio sempre nos diz bastante.
Diogo: Como você interpreta algumas posições favoráveis a legalização da maconha, tais como: George soros, FHC etc.?Luísa: A discussão em torno da maconha tem borbulhado nos últimos anos, e é inevitável que apareçam posicionamentos de todos os lados. A posição do FHC é bastante curiosa: ele foi presidente durante 8 anos e nunca tocou no assunto. Pelo contrário, a política sobre drogas se tornou ainda mais rígida e opressora durante o seu mandato. No filme Quebrando o tabu ele diz que foi assim porque ainda não tinha conhecimento sobre a questão, era ignorante mas, convenhamos, reprimir ele soube muito bem. O posicionamento dele preocupa bastante a partir do momento que ele diz que “essas pessoas” (usuários) devem ser tratadas como doentes. Tirar da esfera criminal e jogar pra esfera da saúde, sob o viés da doença, não deixa de tratar o usuário como um marginal e generaliza todos os usos como problemáticos. Por outro lado, acho que o movimento antiproibicionista não pode rejeitar apoio, por mais contraditório que ele seja. Pessoas que nunca se prestariam a ouvir e falar sobre maconha passam a dar atenção quando uma figura como FHC entra no debate. Meu avô de 84 anos, por exemplo, de direita, conservador, mais próximo daqueles médicos do início do XIX do que de nós, se interessou pelo filme e aceitou uma revista que eu ofereci que tinha o FHC na capa falando sobre a descriminalização, rs. Essa é a parte boa da coisa. Mas temos que estar alertas e disputar o debate, senão a marginalização do usuário só muda de formato. Sobre o Soros, é claro que tem muita grana envolvida nessa história e a perspectiva de que essa renda só cresça com uma possível legalização. Não sou contra um mercado que explore as propriedades da maconha – ela é riquíssima e tem muito a oferecer -, mas tudo deve ser feito com muito cuidado (e supervisão do Estado) para que os consumidores e produtores em pequena escala não continuem a sofrer repressão.
Diogo: É possível afirmar que a maconha possui uma cultura própria?
Luísa: Sem dúvida! Hoje existem centenas de organizações pelo mundo que pautam seu trabalho na luta pela legalização da maconha. Aos poucos os usuários tem se organizado mais politicamente, mas a cultura canábica não implica necessariamente uma posição política mais concreta. No Brasil temos diversos sites/blogs voltados pra cultura canábica de forma bem ampla. O Growroom é um site voltado para a troca de experiências entre usuários – cultivo, leis, redução de danos, informações, assessoria jurídica – que conta com o cadastro de mais de 30 mil usuários! O Hempadão é outro portal sobre informações que disponibiliza filmes, músicas, fotos, poesias, etc. Na Argentina tem a Revista THC, totalmente voltada pra maconha e seus usuários e, apesar da planta não ser legalizada lá, dezenas de pessoas mandam suas fotos com seus pés de maconha para estampar as páginas da revista. Existem mais centenas de sites que tratam do assunto, vendem sementes, bongs, pipes, funcionam como fórum de troca, etc. Enfim, existe uma rede mundial de cultura canábica bastante articulada.
Diogo: Qual foi o papel dos Estados Unidos na proibição da maconha no Brasil?
Luísa: Curiosamente a maconha foi proibida no Brasil antes do que nos EUA, o que não significa que o Tio Sam não estivesse articulando seus interesses e testando primeiro com os vizinhos. As discussões internacionais giravam em torno da coca e do ópio e, em 1924, a maconha entrou na pauta de discussão. O representante do Brasil e outros levaram para a reunião da Liga das Nações Unidas alertas sobre os prejuízos que essa planta, considerada por eles pior que o ópio, poderia causar. No Brasil a proibição teve um caráter social muito forte; nos EUA vejo o caráter econômico pesando bastante, sem excluir o peso da associação que era feita entre a maconha e os mexicanos, indesejados por ali.
Diogo: Alguns estereótipos imputados aos usuários de maconha durante o século XIX ainda existem?
Luísa:Acho que até hoje pagamos o preço dos discursos que levaram à proibição, mas muita coisa tem mudado. Apesar da maconha nunca ter sido droga exclusiva das classes desfavorecidas – vide o movimento da contracultura dos anos 60/70 - , essa associação se manteve por muito tempo e, de certa forma, se mantém nos dias de hoje, ainda que enfraquecida. O debate efervescente tem trazido a discussão para mais perto da realidade, mais pessoas tem se posicionado como usuárias, figuras públicas tem comprado o debate. O mais curioso é que 99,9% das pessoas conhecem alguém que usa maconha, mas nenhuma delas acha que esse usuário conhecido deva ser preso ou tratado como marginal. Está mais do que na hora de mudar essa política, concorda?
Diogo Carvalho é Historiador pela Universidade Federal da Bahia e Mestre em Cultura e Sociedade também pela UFBA.