Quebrando Tabus.





A legalização da maconha é um tema da contemporaneidade que está gerando fortes discussões na sociedade ocidental. Nos últimos anos, estas discussões chegaram ao Brasil. Organizaram-se marchas em prol da legalização do uso pessoal da cannabis, ex-presidentes, acadêmicos e outras personalidades destacadas da política brasileira passaram a debater publicamente os efeitos da atual política proibicionista. Tendo estes elementos em voga, nossa coluna entrevistou Luísa Saad, pesquisadora da Universidade Federal da Bahia, cuja dissertação de mestrado aborda a associação entre os discursos referentes as teorias raciais introduzidas no Brasil, durante o século XIX, e o uso da cannabis sativa.



Diogo: Olá Luísa, muito obrigado pela disponibilidade em dar esta entrevista.
A historiografia brasileira tem posições discordantes ao que diz respeito à entrada da maconha no Brasil. Como este debate está sendo travado na contemporaneidade?

Luísa: Olá, Diogo, agradeço o convite.
Não há nada muito exato sobre a entrada da maconha no Brasil. Pesquisadores do início do século XIX defendiam a ideia de que a maconha havia chegado no Brasil nos primeiros navios negreiros, trazida pelos escravos. Outros mais contemporâneos já questionaram essa possibilidade argumentando que os escravos viajavam em condições precárias e sem aviso prévio. A meu ver, a maconha pode ter chegado nos primeiros navios negreiros sim, mas nada impede que tenha sido trazida por outras figuras, como tripulantes, passageiros ou traficantes que, sem dúvida, viajavam em melhores condições. O fundamental desse assunto todo é perceber que essa associação feita entre a maconha e os escravos foi o que deu todo o suporte para que se formasse o discurso proibicionista sobre a planta. Médicos e naturalistas do início do XIX – sob influência das teorias racialistas (e racistas) que ferviam na Europa desde a segunda metade do século XVIII – passaram a relacionar características raciais a ações desviantes. Nesse caso, o negro – inferior, degenerado, infantil, animalesco – e a maconha – portal para a criminalidade, para a loucura e para a morte.
Diogo: Fale um pouco da sua pesquisa.

Luísa: Minha pesquisa é voltada para o período que antecede a proibição da maconha, em 1932. O que me interessa é o processo de formação dos discursos que foram sendo socialmente incorporados ao longo da Primeira República. As teorias raciais de fim do XIX encontraram um terreno mais do que acolhedor no Brasil: fim da escravidão, crescimento das cidades – e, consequentemente, das doenças, dos crimes – e, principalmente, uma república recém-proclamada que almejava ser moderna e exemplar. Nada mais coerente do que buscar soluções que tinham seus problemas na composição racial da sociedade, altamente miscigenada. Os costumes e práticas dos negros passaram a sofrer intensa perseguição, tudo entrava num balaio só: negros, maconha, capoeira, candomblé, vadiagem, criminalidade. A associação da maconha com o candomblé, em especial, chama a atenção: há indícios de que a maconha realmente fizesse parte do candomblé, inclusive é indicada como planta de Exu. Entretanto, pouco há na bibliografia sobre esse assunto e a dificuldade em se pesquisar mais a fundo o candomblé e essa questão tão delicada nos deixam com diversas interrogações. Teria a maconha sido retirada dos cultos afro-brasileiros como uma estratégia para facilitar a aceitação dessas religiões? Aliás, teria sido retirada a maconha desses cultos? Difícil é achar figuras de dentro dessas comunidades religiosas que queiram ou possam falar sobre isso, rs. De qualquer forma, o silêncio sempre nos diz bastante.
Diogo: Como você interpreta algumas posições favoráveis a legalização da maconha, tais como: George soros, FHC etc.?

Luísa: A discussão em torno da maconha tem borbulhado nos últimos anos, e é inevitável que apareçam posicionamentos de todos os lados. A posição do FHC é bastante curiosa: ele foi presidente durante 8 anos e nunca tocou no assunto. Pelo contrário, a política sobre drogas se tornou ainda mais rígida e opressora durante o seu mandato. No filme Quebrando o tabu ele diz que foi assim porque ainda não tinha conhecimento sobre a questão, era ignorante mas, convenhamos, reprimir ele soube muito bem. O posicionamento dele preocupa bastante a partir do momento que ele diz que “essas pessoas” (usuários) devem ser tratadas como doentes. Tirar da esfera criminal e jogar pra esfera da saúde, sob o viés da doença, não deixa de tratar o usuário como um marginal e generaliza todos os usos como problemáticos. Por outro lado, acho que o movimento antiproibicionista não pode rejeitar apoio, por mais contraditório que ele seja. Pessoas que nunca se prestariam a ouvir e falar sobre maconha passam a dar atenção quando uma figura como FHC entra no debate. Meu avô de 84 anos, por exemplo, de direita, conservador, mais próximo daqueles médicos do início do XIX do que de nós, se interessou pelo filme e aceitou uma revista que eu ofereci que tinha o FHC na capa falando sobre a descriminalização, rs. Essa é a parte boa da coisa. Mas temos que estar alertas e disputar o debate, senão a marginalização do usuário só muda de formato. Sobre o Soros, é claro que tem muita grana envolvida nessa história e a perspectiva de que essa renda só cresça com uma possível legalização. Não sou contra um mercado que explore as propriedades da maconha – ela é riquíssima e tem muito a oferecer -, mas tudo deve ser feito com muito cuidado (e supervisão do Estado) para que os consumidores e produtores em pequena escala não continuem a sofrer repressão.

Diogo: É possível afirmar que a maconha possui uma cultura própria?

Luísa: Sem dúvida! Hoje existem centenas de organizações pelo mundo que pautam seu trabalho na luta pela legalização da maconha. Aos poucos os usuários tem se organizado mais politicamente, mas a cultura canábica não implica necessariamente uma posição política mais concreta. No Brasil temos diversos sites/blogs voltados pra cultura canábica de forma bem ampla. O Growroom é um site voltado para a troca de experiências entre usuários – cultivo, leis, redução de danos, informações, assessoria jurídica – que conta com o cadastro de mais de 30 mil usuários! O Hempadão é outro portal sobre informações que disponibiliza filmes, músicas, fotos, poesias, etc. Na Argentina tem a Revista THC, totalmente voltada pra maconha e seus usuários e, apesar da planta não ser legalizada lá, dezenas de pessoas mandam suas fotos com seus pés de maconha para estampar as páginas da revista. Existem mais centenas de sites que tratam do assunto, vendem sementes, bongs, pipes, funcionam como fórum de troca, etc. Enfim, existe uma rede mundial de cultura canábica bastante articulada.

Diogo: Qual foi o papel dos Estados Unidos na proibição da maconha no Brasil?

Luísa: Curiosamente a maconha foi proibida no Brasil antes do que nos EUA, o que não significa que o Tio Sam não estivesse articulando seus interesses e testando primeiro com os vizinhos. As discussões internacionais giravam em torno da coca e do ópio e, em 1924, a maconha entrou na pauta de discussão. O representante do Brasil e outros levaram para a reunião da Liga das Nações Unidas alertas sobre os prejuízos que essa planta, considerada por eles pior que o ópio, poderia causar. No Brasil a proibição teve um caráter social muito forte; nos EUA vejo o caráter econômico pesando bastante, sem excluir o peso da associação que era feita entre a maconha e os mexicanos, indesejados por ali.

Diogo: Alguns estereótipos imputados aos usuários de maconha durante o século XIX ainda existem?

Luísa:Acho que até hoje pagamos o preço dos discursos que levaram à proibição, mas muita coisa tem mudado. Apesar da maconha nunca ter sido droga exclusiva das classes desfavorecidas – vide o movimento da contracultura dos anos 60/70 - , essa associação se manteve por muito tempo e, de certa forma, se mantém nos dias de hoje, ainda que enfraquecida. O debate efervescente tem trazido a discussão para mais perto da realidade, mais pessoas tem se posicionado como usuárias, figuras públicas tem comprado o debate. O mais curioso é que 99,9% das pessoas conhecem alguém que usa maconha, mas nenhuma delas acha que esse usuário conhecido deva ser preso ou tratado como marginal. Está mais do que na hora de mudar essa política, concorda?






Diogo Carvalho é Historiador pela Universidade Federal da Bahia e Mestre em Cultura e Sociedade também pela UFBA.
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A Desguetificação da cultura Guei



Na primeira semana de novembro estarei no Rio de Janeiro participando do I Encontro FUNARTE de Políticas para as Artes, falarei sobre a cultura guei e , aqui, começo a esboçar algumas reflexões. Começo com uma frase que pode parecer polêmica: a cultura brasileira é heteronormativa. Para tentar esclarecer o adjetivo gostaria de lembrar das palavras de uma das principais referências dos estudos de gênero na contemporaneidade, Judith Butler. Para a autora norte-americana, por heteronormatividade entende-se a legitimação do modelo heterossexual como norma regulatória das relações sexuais e de gênero na sociedade ocidental contemporânea. A base para sua legitimação está na idéia de que a sexualidade é orientada por aspectos biológicos e, como conseqüência disso, a associação entre heterossexualidade e reprodução é concebida como natural e irremediável, como diz BUTLER. Segundo Miskolci, Professor da UFSCAR, a heteronormatividade expressa expectativas, obrigações e demandas sociais resultantes do pressuposto de uma heterossexualidade natural e compulsória.


Em outras palavras, a heteronormatividade é um conceito diferente de heterossexualidade. Uma das diferenças mais notáveis entre os dois termos é que a heteronormatividade não tem um conceito paralelo como ocorre com a heterossexualidade, a qual organiza a homossexualidade como seu oposto. Dado que a homossexualidade não pode jamais usufruir da correção tácita e invisível para a formação social da qual a heterossexualidade usufrui, não seria possível falar de “homonormatividade” no mesmo sentido.


Falar em cultura guei pode ser uma estratégia reducionista porque, quase sempre, acaba por revelar-se uma armadilha, correndo o risco de produzir e reproduzir discursos rasos e sem reflexão sobre o que se é feito. Mais arriscado ainda é associar Cultura guei somente à práticas guetificadas, como a de drag queens, gogo boys, homoerotismo e shows de transformismo. Evidentemente que tratam de expressões artísticas de relação imediata e significativa à Cultura guei, sim, mas não são seus únicos indicadores.


O sentido de Cultura não está relacionado somente à Arte. Muito menos significa somente conhecimento e superioridade sobre determinado assunto. O pensar sobre os significados de Cultura guei deve atravessar o conceito ampliado de Cultura e ser relacionado à realidade a qual estamos inseridos, para possivelmente, termos uma indicação de caminho para seu entendimento.




Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.
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VIAJANDO NO PASSADO


Eu estava voltando para casa outro dia, ouvindo um CD de uma coletânea de músicas dos anos oitenta. Distraída, eu me deixei levar pelo som em um tobogã de rápidas lembranças. A música tem esse poder. É uma prece que nos coloca em contato com o celestial, levitando nosso corpo e permitindo que nossa alma liberte-se das terrenas preocupações. Eu gostava muito daquela música, mas foi somente agora que percebi o solo de violinos. Eu que amo violinos, os ignorava quando mais jovem. A infância é assim, nunca estamos em silêncio. Envelhecer tem suas vantagens. 

Naquela época, as crianças andavam soltas pelas ruas, encontrando-se após as aulas para brincar ou fazer trabalhos escolares. A maioria das mães não trabalhava fora, então o café da tarde era normalmente com bolinhos de chuva ou bolo de chocolate, feitos na hora. A educação das crianças era quase tribal: aprendíamos umas com as mães das outras. Na saída, uma mãe costumava dizer: “Não toque a campainha insistentemente, apenas uma vez e aguardem!”. A outra, mais preocupada: “Nunca conversem com estranhos”. Os avôs nos contavam histórias enquanto nos deliciávamos com o cheiro de café com leite e pão quente – caseiro, claro − com manteiga.
Havia também a casa dos avós, muitas vezes no mesmo quintal. Alguns que haviam partido, outros que moravam com os filhos, mas o lar permanecia ali, um museu de móveis antigos e cristaleiras de diamantes. Na casa de algumas amigas, estudávamos nessas casas desabitadas, desde que prometêssemos não mexer em nada. E não mexíamos! O passado assoviava em nossos ouvidos que aquele templo merecia respeito.

Quando não bastava consultar na Enciclopédia Barsa, íamos à biblioteca emprestar livros, fazíamos cópias e passávamos a tarde elaborando aquela tarefa. Uma de minhas amigas, a Sônia, a mais habilidosa de todas, desenhava muito bem. Lembro-me de um Padre Anchieta que ela pintou na capa de veludo preto, belíssimo. Não havia obviamente internet, “copiar e colar” como hoje. A criatividade, o trabalho em grupo, o aprendizado com as diferentes famílias nos tornavam pessoas emocionalmente mais maduras.
Eu sempre fui péssima em artes, mas adorava estudar. Outra amiga gostava muito de desenhar, ela fazia meus mapas e eu corrigia a lição dela de matemática. Isso foi antes do ensino médio, quando eu ainda entendia a matéria. Depois, deixou de ser algo que eu dominava e até hoje me perco em álgebra e equações de diversos graus. Tínhamos uma professora japonesa – quem nunca teve um professor ou professora oriental? – que “deixava” todos os alunos de recuperação de inglês. O inesquecível nome dela era Tieko, uma senhora franzina e delicada de meia idade, mas para nós – alunos −, era como se um dinossauro entrasse na classe quando a víamos, de puro medo. Tudo besteira, ela gostava de disciplina, mas era carinhosa com os alunos. Eu gostava de idiomas e era sua assistente nas épocas de recuperação.
Nós alunos nos ajudávamos, não podíamos pagar professor particular. Havia interesse em passar de ano e respeito, muito respeito pelos professores. A diretora da escola era a figura máxima de autoridade. Ser convidado a conversar com ela era sinal de problemas muito sérios. Hoje, as crianças não respeitam nem os pais, que passam pouco tempo com elas, e muitas vezes não sabem como foi o seu dia, se tinham trabalhos escolares, se comeram bolo no café da tarde ou se choraram a tarde toda porque brigaram com um coleguinha. Os pobres professores são atacados verbalmente – quando não fisicamente – e os pais quando chamados protegem os filhos e procuram culpar os outros.
Pensando nisso, Deus fez o domingo para pais e filhos se confraternizarem e resgatarem um pouco desse contato cotidiano que hoje não é mais possível. E para que nós, adultos, saibamos a importância da infância, Ele fez a música, que tem o poder de nos transportar no tempo num piscar de olhos, desconectando-nos de nossas preocupações e permitindo que reflitamos sobre o que desejamos para os nossos pequenos. 






Simone Alves Pedersen nasceu em São Caetano do Sul e hoje mora em Vinhedo, SP. Formada em Direito, participa há três anos de concursos literários, tendo conquistado inúmeros prêmios no Brasil e no exterior. Tem textos publicados em dezenas de antologias de contos, crônicas e poesias. Escreve para jornal, revista e diversos blogs literários. Escreveu o primeiro livro infantil em 2008, o “Vila felina” seguido de Conde Van Pirado, Vila Encantada, Sara e os óculos mágicos, Coleção Pápum e Coleção Fuá. Para adultos lançou “Fragmentos & Estilhaços” e “Colcha de Retalhos” com poemas, crônicas e contos: http://www.simonealvespedersen.blogspot.com/
Hoje excepcionalmente, publica na Coluna Incontros.

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Café com PP e Batuclagem




Amanhã acontece o 11o encontro do Café com PP no Campus Sigma da Universidade Federal do ABC.  Haverá apresentação de Piano e palestras sobre Participação Social e Desenvolvimento e desafios da agenda ambiental no Território Urbano. Mais detalhes, abaixo:




O projeto Batuclagem, meio ambiente, música e Arte, coordenado pela Professora Ana Maria Dietrich e pela técnica administrativa Juliana Cayeres fará uma apresentação nesse sábado, dia 22, no Dia da Solidariedade e Cidadania da UFABC às 13h30 e às 15h. A comemoração será no Campus Santo André - da UFABC. O  projeto é uma parceria da UFABC com a Escola de Samba Tradição de Ouro de Santo André.



Amanhã será lançado o livro Retroflexo, de Sílvio Santos Basso em Americana. Quem convidou os leitores da revista foi nosso colunista Geraldo Trombin, da Uni.verso.



Continuam abertas as inscrições para mini-cursos e apresentações de trabalho do I SEMINÁRIO NACIONAL LEPCON - Minorias e suas representações. Venha comer pão-de-queijo e discutir arte e cultura conosco. Mais informações, clique aqui.


Ana Maria Dietrich é professora adjunta da UFABC e coordenadora da Contemporartes-Revista de Difusão Cultural junto a Rodrigo Machado.

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Quizás, talvez, perhaps...



Cometerei um crime. Tentar comentar, mesmo que minimamente, um aspecto da obra de Wong Kar-Wai em cerca de seis mil caracteres, nada menos do que uma afronta pode ser. As breves linhas que seguirão partem da minha experiência recente em assistir a “Um beijo roubado” (cujo título em inglês é muito mais eficiente, “My blueberry nights”) e a um filme mais antigo de sua autoria, um dos responsáveis pela notoriedade de sua assinatura fílmica, “Felizes juntos”.

No DVD deste último, na indicação de sua censura, uma linha frisa que o tema da película é a “dificuldade amorosa”. Tendo em mente o lado clichê dessa afirmação, porém partindo dela, perguntemo-nos: como Kar-Wai constrói essas dificuldades?

Nos dois filmes citados temos, primeiramente, a questão do deslocamento geográfico. Os personagens de “Felizes juntos” partem de Hong Kong para a Argentina, enquanto o personagem interpretado pelo belo Jude Law é um inglês que habita Nova Iorque. Além disso, ambos giram em torno das tentativas e erros, das vontades não concretizadas. O inglês queria ser atleta, mas possui um pequeno bar; os dois primeiros chegaram visando uma ambientação outra para tentar recomeçar suas vidas juntos.


Um cinema do recomeço? Personagens que se encontram sempre em estados de transição, em lugares entre. Elizabeth, a personagem de Norah Jones, vaga pelos Estados Unidos, em busca de trabalhos que preencham sua mente e a mantenham sem tempo para pensar. Apenas dessa forma, com trezentos dias de muita informação e do intercâmbio com as mais diversas figuras, ela estará apta a um recomeço. Mas aqui se tem uma pequena diferença entre as obras. Se no filme mais recente o recomeço individual é um ponto de partida, na produção anterior é a possibilidade de recomeço para duas pessoas que impulsiona o andar. Os personagens de Wong Kar-Wai parecem estar vagando, como almas passantes. Eles não habitam espaços, eles apenas estão efemeramente dentro deles. Eles não são, estão. Os personagens de “Felizes juntos” não são gays – antes de tudo eles são humanos.

 Ponto que soma a essa leitura é a freqüência com que o diretor mostra os ditos “não-lugares”, os metrôs, os trens, os carros, os ônibus – os espaços de locomoção. Em “Um beijo roubado”, sempre que possível, intercalando as mensagens escritas entre Elizabeth e Jeremy, o diretor opta por mostrar-nos diversos ângulos do trem de Nova Iorque. Enquanto isso, em “Felizes juntos”, o metrô já pode ser lido como uma metáfora da mudança de estado, do momento de atitude perante os problemas. É levantar e fazer algo, é passar de uma estação (de um amor?) para outra ou para, pelo menos, a possibilidade de outra. É essa consciência de que (por mais cafona que possa soar) estamos no mundo meramente de passagem, assim como em um metrô, e precisamos enfrentar diversas estações. Se visarmos a Sé e estivermos na Luz, teremos de passar pela estação São Bento. Porém, chegar à Sé não é a finalidade última – sempre teremos o metrô. Bastará força para entrarmos novamente nele e seguirmos nossa viagem. Para onde? Nenhum lugar, talvez.




Partindo dessa possibilidade, desse ser levado pelos fatos, seus personagens podem soar vazios. Eu tendo a achar que este diretor, por outro lado, preenche seus personagens de lacunas, deixando a nós, enquanto espectadores, a densa missão de recodificarmos esses espaços. Talvez possamos dizer que eles são permeados por vazios, mas não que os mesmos são vazios em si. Essa forma de narrar em cinema talvez confunda-nos por acabar sendo um contraponto às massificadas narrativas do cinema contemporâneo, com personagens permeados por medíocres destinos e personalidades muito bem desenhadas. Obras em que os personagens não têm nós.

Wong Kar-Wai tem uma poética permeada por nós e, sutilmente, deixa-nos a opção de desatá-los. Ou então podemos seguir fruindo seus planos sem tentar também dominar os significados destas cores vivas, destas bruscas mudanças de velocidade das imagens, destes ângulos agudos e destas trilhas sonoras com canções as mais diversas, escolhidas a dedo. Pois, pensando bem, da mesma forma que esses personagens vagam com suas ausências, não seriam estas imagens tomadas por uma imanência, sem qualquer necessidade de transcendências alegóricas?

Esse caráter concreto das imagens de seus filmes faz-me pensar em relações possíveis com o célebre pintor Edward Hopper, que comumente construía suas figuras interagindo em paisagens urbanas ou dentro de seus espaços privados. Algumas vezes seus humanos parecem manequins. Em “Chop Suey”, por exemplo, temos duas mulheres sentadas uma perante a outra. Elas conversam? As figuras de Hopper têm voz? Se tiverem, devem estar a fazer dois monólogos – mesma impressão que temos em alguns momentos dos filmes de Kar-Wai, devido às diferentes freqüências dos personagens apresentados. Os mais interessantes momentos de interpessoalidade em Kar-Wai dão-se nas sutilezas, como no cigarro fumado em conjunto ou nas feridas de diferentes pessoas que sangram simultaneamente. Haverá espaço para uma futura cicatrização também? Isso, novamente, cabe a nós rascunharmos, tendo como base os rascunhos de atitudes de seus personagens.

Chegando já ao fim desta argumentação, acho que cabe lermos as obras de Kar-Wai junto a, por exemplo, a música cantada por Nat King Cole e incluída na trilha de “Amor à flor da pele”, “Quizás”. É um cinema do talvez, das possibilidades, das trilhas de leituras. Cada espectador que siga uma, assim como os personagens criados por ele. Incertezas tanto na consciência desses personagens perante suas atitudes quanto por parte nossa. Será que é nessa estação que queremos descer, será que é com essa pessoa que queremos dividir nossas inseguranças? Talvez, quizás ou até mesmo perhaps (como canta o Cake).

Uma amiga minha costuma dizer que, quando uma vez, durante uma discussão, foi perguntada “Aonde você quer chegar com isso?”, simplesmente respondeu “Eu só quero ir”. Talvez essa seja a melhor chave para a leitura dos filmes de Wong Kar-Wai.





Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (realizada na Caixa Cultural de Brasília e São Paulo, 2011), o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, a Mostra do Filme Livre e o Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora.  Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). Realizador de curtas-metragens como "Boiúna" (2004), "A respiração" (2006) e "Preguiça" (2009).
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Não, não quero mais palavras retas




 A OUTRA

 
Não, não quero mais palavras retas
retilíneas e certas, precisas
Quero palavras tortas, cambaleantes,
encharcadas como um ébrio de sua bebida
a andar por aí à esmo, sem saber aonde chegar
Palavras embaralhadas, desprovidas de sentido,
palavras torpes, inaudíveis aos apurados ouvidos
Palavras que gritam, palavras que ferem
como ponta de faca
Palavras que acariciam como mãos de fada
Palavras...palavras...palavras...
Que me escapam entre os dedos
espalhando-se no branco papel
Palavras brancas, palavras brandas
Palavras vermelhas de sangue
Meu próprio sangue que escorre e flui
Como esntancá-lo, ferida aberta e exposta?
Como silenciar a voz que sai das entranhas
Esse grito gutural e animalesco
Esse urro, esse sussurro, esse bradar...
Como lobo a uivar pra lua
Animal aprisionado que se liberta
A noite não tem fim
Fechem janelas e portas
Tentem não ouvir esse apelo
Continuem surdos em seus mundos de hipocrisia
Sou fera, sou bicho, sou fêmea
Quando a lua vislumbro no alto céu
não sou mais eu , me transformo
Sou a natureza selvagem que em mim habita





Ianê Rubens de Mello nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É educadora e pós-graduada em Pedagogia. Identificada com as diversas propostas em textos literários, escreve também com resultados diversificados. Seus textos incluem contos, crônicas, aforismos, haicais e poesias. Alguns deles são publicados na internet, em sites, blogs e revistas eletrônicas. Escreveu um livro de contos do rock "Rocktales" com o escritor Beto Palaio, em análise pela Editora Record.




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Um Van Gogh para a burguesia, um Van Gogh neoliberal



Os serviços van Gogh dos bancos Real Santander, visando à proeminência no mercado e a superação da concorrência, são oferecidos para clientes que possuem renda mensal mínima de R$ 4 mil ou investimentos acima de R$ 40 mil que incluem espaços privativos nas agências; atendimento gerencial por telefone até a meia-noite 365 dias por ano e  participação de encontros e palestras com especialistas em investimentos. No entanto, como foi possível conciliar um serviço reservado às elites financeiras, potencialmente ativas no mercado com um pintor marginalizado, crítico da sociedade de mercado, que vendeu apenas um único quadro em vida, que esteve ao lado de camponeses, tecelões, mineiros, enfim, da escória da sociedade?

Devemos levar em consideração que as grandes corporações (como é o caso destes bancos) não se envolvem com arte por gostar incondicionalmente da arte. Este envolvimento deve ser entendido como forma de distinção social da qual depende sua condição de elite e suas aspirações de classe. Não é a arte como arte, e sim a arte como propaganda, e a arte como propaganda é direcionada a um público-alvo (os clientes que possuem as condições acima descritas). A publicidade faz um trabalho de depuração, isto é, de limpeza das coisas que ela toma, mantendo apenas o lado positivo, entusiástico, festivo, agradável. Temos por objetivo mostrar a forma utilizada pelos bancos para tornar van Gogh o pintor ideal para este tipo de serviço bancário.

No caso de van Gogh, os bancos mantiveram o artista que foi forçado a dar as costas ao cenário humano com toda a sua injustiça para contemplar a calma demasiada grande da natureza (o artista alienado, com acentuado caráter individualista) em detrimento do artista que possui engajamento social, preocupação com a humanidade, principalmente com a classe trabalhadora. Esta divisão entre artista alienado e artista engajado encontra-se num determinado espaço e tempo: seu período holandês (1880-1886) é permeado pela crítica social; já seu período francês (1886-1890) é marcado pelo aprimoramento das técnicas pictóricas e sua total dedicação à natureza. E são justamente as obras do período francês que adornam as agências bancárias.

Dentre os gêneros de pintura “expurgados”, temos os retratos e auto-retratos (altamente valorizados no mercado da arte), o que aumenta a sensação de privacidade no ambiente e pelo fato de o próprio van Gogh não possuir um perfil de cliente van Gogh; as naturezas mortas que remetem a um ethos oposto aos valores do público alvo (como por exemplo, pares de sapatos e tamancos) e pinturas de gênero onde se representa o trabalho manual (gênero este da única tela vendida em vida), também avesso ao público alvo.

Antes da fusão dos dois bancos (prevalecendo a marca Santander), o banco Real oferecia em seu web site a chave para o desvelamento da contradição contida na escolha de van Gogh como o garoto propaganda para os serviços de segmentação alta renda, ao propor que o conhecimento da vida e obra de Vincent van Gogh permitiria perceber que a proposta, a filosofia e os valores do banco encontram neste artista um grande sentido. Percebemos, pelo contrário, que van Gogh se colocava ao lado daqueles que não possuíam perfil nem condições financeiras suficientes para ser um cliente van Gogh; sua arte era para os menos favorecidos, não para a burguesia. Mas a grande contradição reside no fato de que se van Gogh não tivesse ido contra a lógica do mercado e contra o ethos burguês, hoje estes mesmos bancos não poderiam utilizar de suas obras para atrair parte da burguesia para seus serviços. Temos até a impressão de o banco servir como mecenas para van Gogh, sendo que na verdade o banco (ou a classe que o representa), em sua respectiva época, foi seu algoz.

 Não desconsideramos estética, histórica e artisticamente as obras selecionadas pelos bancos para adornar suas agências. Devemos admitir que esta vinculação foi extremamente bem feita, pois atende as necessidades do capital (o banco Santander mantém-se na liderança no segmento de alta renda, angariando 1,9 milhões de clientes, mantendo uma marca cuja autoria é de outro banco). A identidade visual é fidedigna ao pintor (van Gogh intitulou-se no período francês como “pintor de girassóis”). No entanto, sob o ponto de vista da Arte, somos levados, a partir desta experiência, a refletir no papel nocivo que possui a publicidade ao desconstruir, ou pelo menos atenuar, o aspecto crítico da Arte e sua utilização como uma forma de resistência, pois a publicidade instila aspectos ideológicos que lhe são convenientes nos seus próprios opositores.

Este texto foi elaborado com os resultados obtidos no projeto de iniciação científica do Centro Universitário Fundação Santo Andre – CUFSA 2011, intitulado “Vincent van Gogh e serviços van Gogh dos bancos Real Santander: a arte a serviço dos bancos”. Orientação de Carlos César Almendra


Davi Rizzate é nascido em São Bernardo do Campo, SP.  Graduando em bacharelado e licenciatura do curso de Ciências Sociais do Centro Universitário Fundação Santo André – CUFSA. (3° ano)Bolsista do Projeto de Iniciação Científica – PIIC FSA 2010-2011. Membro do projeto de extensão Cineducação também pela CUFSA. Nas horas vagas freqüenta cursos e grupos de estudo que envolvem as diversas áreas das Humanidades, tais como Teologia, Artes e curadoria, Política, História, Museologia, Música, etc. 

A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.
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