Breve digressão a partir da pintura de Matisse
Afinal, acho mesmo que esse também é um espaço para digressões (concorda, Ana?), pequenos desvios de pensamento que podem vir a ser efetivamente produtivos para nossas futuras reflexões, e talvez – espero – “ligar” algo em cada um de vocês - mesmo que sem uma forma definida.
A Família do Pintor, 1911, oleo sobre tela, 143 x 194 cm
Museu Hermitage, São Petersburgo
“Tudo interligado como uma corda ou uma serpente”, afirma Matisse. O arabesco tece a superfície como uma tela de signos, formando um tecido total. Olhemos mais uma vez para Harmonia em Vermelho.
Harmonia em Vermelho, 1908, óleo sobre tela, 180 x 220 cm
Museu Hermitage, São Petersburgo
Museu Hermitage, São Petersburgo
Uma cena de vida cotidiana sim, mas em que os propósitos dessa vida estão quase que em suspenso momentaneamente. A natureza externa é trazida para dentro, ambiente da cultura. As frutas da cesta sobre a mesa parecem caídas da árvore dali de fora. [Em muitas pinturas de Matisse, encontramos a janela, que liga o significado (supostamente) dado (da natureza) e o construído (da cultura)].
Lembro então da Sra. Ramsay, personagem de Virginia Woolf em Rumo ao farol, ela que “não queria dizer uma coisa, mas queria dizer tudo. Pequenas palavras que dispersavam o pensamento e o desmembravam não diziam nada (...) urgência do momento sempre perdia seu alvo (...) Pois como alguém podia expressar em palavras aquelas emoções do corpo? Expressar aquele vazio ali?(...) De repente, a sala de desenho vazia dá um passo, a prega da cadeira ali dentro, o cachorrinho se revirando no terraço, toda a onda e o sussurro do jardim se tornaram como curvas e arabescos florescendo em torno de um centro de completo vazio.”[2]
Afinal, não cabe mesmo ao homem o que lhe é dado no momento? A cognição momentânea, o significado é ininterruptamente construído? O homem moderno é aquele que vive seus limites psico-físicos
Nesse sentido, o ato pictórico de Matisse é consentâneo com a temporalidade da existência moderna: ali se materializa um absoluto presente, continuamente efêmero, proporcional à descontinuidade do signo, que num momento ganha certo sentido, e num outro, muda. O pintor apresenta o movimento instantâneo e contínuo das suas áreas lisas e coloridas num mundo em que o significado não é dado previamente, mas construído -como um arremesso ininterrupto - “brilho abstrato insignificante que não pode durar, permanece nada, e volta para o vazio que ele ilumina” (Blanchot).
Ao fim de sua vida, essas zonas coloridas viram literalmente áreas de cor nos papéis recortados.
A Cabeleira, 1952, guache sobre papel, cortado e colado
Coleção particular
Nu Azul (IV), 1952, guache sobre papel, cortado e colado, e carvão sobre papel branco, 103 x 74 cm
Musee Matisse, Nice-Cimiez
Musee Matisse, Nice-Cimiez
E não podemos ver O grande nu como um arabesco? Ou A Cabeleira? Não à toa Matisse reconhece em entrevista: “Você não pode imaginar a que ponto, nesse período de papéis cortados, a sensação de vôo que se desenvolve em mim me ajuda a melhor ajustar minha mão quando ela conduz o trajeto de minhas tesouras”[3].
Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.
1 comentários:
Puxa! Que aula de formação de verdades e informações.
23 de janeiro de 2010 às 19:32Postar um comentário
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