quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Breve digressão a partir da pintura de Matisse


Afinal, acho mesmo que esse também é um espaço para digressões (concorda, Ana?), pequenos desvios de pensamento que podem vir a ser efetivamente produtivos para nossas futuras reflexões, e talvez – espero – “ligar” algo em cada um de vocês - mesmo que sem uma forma definida.


                           A Família do Pintor, 1911, oleo sobre tela, 143 x 194 cm

Museu Hermitage, São Petersburgo
Difícil fixar nosso olhar em determinado ponto na pintura de Matisse. Existe uma difusão dos pontos focais: tudo conta num quadro, e nem a figura nem qualquer elemento devem atrair nossa atenção. Pintor por excelência, Matisse estrutura a pintura que promove a difração de nosso olhar com a cor: “cada cor sustenta, impulsiona, acentua as outras num interminável crescendo.” Assim o historiador da arte Giulio Carlo Argan define o procedimento de Matisse como aditivo: cada cor é muito mais do que seria isoladamente. E o quadro então somente se completa quando todas as cores alcançaram o limite do espectro e concordam entre si em seus valores máximos, como zonas luminosas e expandidas, cujas fronteiras não correspondem a limites, mas a um “novo arremesso”. As cores colorem todo o espaço, somando-se umas às outras; “as linhas não são contornos, mas arabescos coloridos que asseguram a circulação, a irradiação cromática de todo o tecido pictórico.”[1]
 “Tudo interligado como uma corda ou uma serpente”, afirma Matisse. O arabesco tece a superfície como uma tela de signos, formando um tecido total. Olhemos mais uma vez para Harmonia em Vermelho.

Harmonia em Vermelho, 1908, óleo sobre tela, 180 x 220 cm
Museu Hermitage, São Petersburgo

Uma cena de vida cotidiana sim, mas em que os propósitos dessa vida estão quase que em suspenso momentaneamente. A natureza externa é trazida para dentro, ambiente da cultura. As frutas da cesta sobre a mesa parecem caídas da árvore dali de fora. [Em muitas pinturas de Matisse, encontramos a janela, que liga o significado (supostamente) dado (da natureza) e o construído (da cultura)].
Lembro então da Sra. Ramsay, personagem de Virginia Woolf em Rumo ao farol, ela que “não queria dizer uma coisa, mas queria dizer tudo. Pequenas palavras que dispersavam o pensamento e o desmembravam não diziam nada (...) urgência do momento sempre perdia seu alvo (...) Pois como alguém podia expressar em palavras aquelas emoções do corpo? Expressar aquele vazio ali?(...) De repente, a sala de desenho vazia dá um passo, a prega da cadeira ali dentro, o cachorrinho se revirando no terraço, toda a onda e o sussurro do jardim se tornaram como curvas e arabescos florescendo em torno de um centro de completo vazio.”[2]
Afinal, não cabe mesmo ao homem o que lhe é dado no momento? A cognição momentânea, o significado é ininterruptamente construído? O homem moderno é aquele que vive seus limites psico-físicos
Nesse sentido, o ato pictórico de Matisse é consentâneo com a temporalidade da existência moderna: ali se materializa um absoluto presente, continuamente efêmero, proporcional à descontinuidade do signo, que num momento ganha certo sentido, e num outro, muda. O pintor apresenta o movimento instantâneo e contínuo das suas áreas lisas e coloridas num mundo em que o significado não é dado previamente, mas construído -como um arremesso ininterrupto - “brilho abstrato insignificante que não pode durar, permanece nada, e volta para o vazio que ele ilumina” (Blanchot).
Ao fim de sua vida, essas zonas coloridas viram literalmente áreas de cor nos papéis recortados.

A Cabeleira, 1952, guache sobre papel, cortado e colado
Coleção particular




Nu Azul (IV), 1952, guache sobre papel, cortado e colado, e carvão sobre papel branco, 103 x 74 cm
Musee Matisse, Nice-Cimiez

E não podemos ver O grande nu como um arabesco? Ou A Cabeleira? Não à toa Matisse reconhece em entrevista: “Você não pode imaginar a que ponto, nesse período de papéis cortados, a sensação de vôo que se desenvolve em mim me ajuda a melhor ajustar minha mão quando ela conduz o trajeto de minhas tesouras[3].





 Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.

1 comentários:

Rosana disse...

Puxa! Que aula de formação de verdades e informações.

23 de janeiro de 2010 às 19:32

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.