terça-feira, 16 de agosto de 2011

Krtek e o universo ao redor


Duas formas orgânicas. Um contorno preto e um preenchimento acinzentado. Acima, um ponto vermelho, um nariz. Mãos e pés. Patas. O que temos aqui? Uma topeira em português, “a mole” em inglês e, em tcheco, “krtek” - este é o nome do personagem criado pelo desenhista Zdeněk Miler. Diferente de uma topeira, porém, os olhos deste Krtek animado são grandes, expressivos e inquietos.

Ao se caminhar pelo centro histórico de Praga, capital da atual República Tcheca, é difícil não perceber a proliferação de souvenirs de Krtek: fantoches, marionetes, ímãs de geladeira e até mesmo ioiôs são vistos à venda. Trata-se de um personagem que pode ser tido como símbolo da cultura tcheca; temos aqui mais um marco dentro de certa tradição do desenho animado encontrada neste país.

O primeiro episódio de Krtek, intitulado “Como Krtek conseguiu suas calças”, data de 1956-57 e tem aproximadamente doze minutos. Diferente dos outros episódios, ouvimos falas em tcheco entre a topeira e outros animais moradores da floresta que habita. A apreciação que faz de uma calça pendurada em um varal faz com que ele tenha vontade de possui-la e vesti-la. Tal dilema, tal vontade de experimentação do desconhecido, é comum a todos os episódios de Krtek. Nossa topeira quer atribuir significado aos mais diversos objetos da cultura de massa.

Krtek é como uma criança: pequenino, balbucia palavras e tem olhos curiosos. Não se trata, porém, de ingenuidade no lidar, mas sim de novidade. Isso é reforçado pelos títulos dos episódios animados: “Krtek e o rádio”, “Krtek e a televisão”, “Krtek e o pirulito” e “Krtek e o foguete”, por exemplo. O personagem desconhece as funções deles e no decorrer, geralmente, dos cinco minutos de seus episódios fará um esforço por compreendê-los. 

O rádio, inicialmente benigno, espanta todos os animais da floresta devido a seu barulho e acaba por ser destruído. Triste, Krtek faz seu enterro. A televisão deve ser destruída, já que nela nosso personagem assiste, sem querer, a uma notícia que incentiva a destruição da natureza. O pirulito faz com que ele o associe a uma placa de trânsito e tente estabelecer regras para o tráfego de animais na floresta. O foguete, por sua vez, faz com que percorra grandes distâncias, caia numa ilha e interaja com diversas espécies de animais aquáticos. 

Interação com o novo e alteridade. Este parece ser um outro tópico de Krtek. O desenho versa sobre como lidar com as diferenças entre as espécies e vontades dos animais. Mais de uma vez a topeira se pega fascinada por um bem material e é repelida pelos outros animais. Em um dos episódios mais ácidos, “Krtek e o fim-de-semana”, este viaja de carro para uma paisagem próxima à floresta. Lá, dotado dos mais diversos bens de consumo de férias, tal como um guarda-sol, um colchão de ar e uma televisão portátil, se depara com seus amigos que, simplesmente foram ao mesmo lugar, andando e sem portar nada. Enquanto Krtek leva comida pronta e cozinha, o coelho e o rato colhem das árvores. Estes dois nadam livremente e a topeira leva seu equipamento de mergulho. No dia seguinte, ao sair novamente, Krtek larga todos os objetos dentro de sua casa e segue com eles para o mesmo lugar. 

E quando as coisas não dão certo? E quando as desavenças não são vencidas ou há dificuldade em interpretar o que o circunda? Ele chora. Seus olhos curiosos se cerram, lágrimas caem por seu rosto e a postura do melancólico, com sua pequena mão que sustenta o peso de sua cabeça, surge. Aonde, geralmente, estas cenas ocorrem? Não à toa, acima da sua casa, sentado em cima do monte de terra que é espalhada ao se escavar e sair do mundo subterrâneo. Krtek fica em seu porto seguro, seu espaço privado, para lamentar os percalços da vida. 

Esse talvez seja um diferencial de Krtek para outros desenhos infantis: uma excessiva melancolia. Desenhado e colorido artesanalmente, com traços e paleta que ecoam a pintura de Henri Rousseau, o desenho marcou diversas gerações não apenas no chamado Leste Europeu, mas na Europa como um todo devido à sua exportação e disseminação pela televisão. Aqui do Brasil podemos lamentar não termos sofrido junto com Krtek durante nossas infâncias, mas, atualmente, já “adultos”, conseguimos ter acesso a todos os seus episódios pela internet, especialmente via Youtube. 

Hora de sermos nostálgicos e retornarmos às nossas infâncias. Hora de lembrar como aqueles objetos que Krtek analisa um dia também causaram estranhamento a nós. Hora de fazermos adaptações e constatarmos que, dia após dia, novos objetos e situações nos dão a mesma dose de incompreensão. Hora de revermos até que ponto a melancolia e dilemas de Krtek são comuns a toda a existência humana, para além da faixa etária.














Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (realizada na Caixa Cultural de Brasília e São Paulo, 2011), o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, a Mostra do Filme Livre e o Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora.  Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). Realizador de curtas-metragens como "Boiúna" (2004), "A respiração" (2006) e "Preguiça" (2009).

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