... e você não ficou
Recentemente estive em um aniversário de oitenta anos da avó de uma amiga. Entre diversas mesas, buffet e reencontros entre pessoas que há muito tempo não se viam, logo no início da festa, houve um momento em que a aniversariante sentou sob uma cadeira, uma espécie de trono, e assistiu a uma projeção de fotografias. Uma narração resumiu em cerca de oito minutos sua vida em passsos: nascimento, casamento, filhos, profissão e hábitos já da terceira idade. Após todo esse ritual biográfico, o salão foi esvaziado e transformado em uma pista de dança. Muitas pernas, muitos passos, muitas vozes cantando em um só tom; amigos de mais de cinquenta anos desta senhora ali estavam festejando esse momento único ao lado de pessoas das mais diversas gerações. Neste momento, depois de ouvir hits nacionais e internacionais, de As Frenéticas até Louis Armstrong, pensei: “O que fica da vida? O que fica das relações? O que deixa marcas nesta memória coletiva? A música”.
É sobre este tópico que versa o novo filme de Eduardo Coutinho, “As canções”, projetado recentemente no Festival do Rio, onde ganhou o prêmio de melhor documentário. Uma cadeira e cortina pretas, uma pessoa sentada de frente para a câmera e o diretor ao lado, fora do enquadramento. Apenas o essencial é demonstrado enquanto imagem: o elemento humano, sua voz, sua expressividade e os pitacos do entrevistador. Os entrevistados cantam músicas que marcaram suas trajetórias e tentam explicar para Coutinho o contexto destas lembranças. O filme se caracteriza como uma obra sobre o amor: o casamento que nunca deu muito certo, mas que durou décadas; o namoro de adolescência que deixa saudosa uma senhora de sessenta anos; a música de um casal que foi transplantada para a relação infiel do marido com uma amante. A vida parece só ter sentido quando adquire uma trilha sonora.
Existem as fotografias, imagens sobre papel que registraram, geralmente, a felicidade desses encontros, mas quando se compartilha com o mundo o ato do canto, quando se recodifica de modo pessoal uma canção que o público conhece (e as pessoas sentadas no cinema Odeon não poucas vezes cantaram junto com estes então desconhecidos), parece que há a transformação de algo individual em universal. Se sai do espaço privado e se atinge as pessoas sentadas na sala de cinema que, possivelmente, também tem relações diferentes com cada uma daquelas músicas cantadas. Há um compartilhamento da dor (ou, em menor grau no filme, da alegria) que ultrapassa a narração de uma vida que não é a nossa.
Foram-se as pessoas amadas, mas elas sempre serão lembradas devido à música. Como diz o nosso mestre Roberto Carlos, “ficaram as canções e você não ficou”.
Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (realizada na Caixa Cultural de Brasília e São Paulo, 2011), o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, a Mostra do Filme Livre e o Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora. Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). Realizador de curtas-metragens como "Boiúna" (2004), "A respiração" (2006) e "Preguiça" (2009).
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