terça-feira, 1 de novembro de 2011

A gaita e a permanência




Falar sobre cinema na República Tcheca remete de modo inevitável à minha infância. Tinha cerca de seis anos e estudava pelo turno da manhã. Como quase toda criança dos anos 90, geração pré-internet, uma boa opção para diversão era assistir a desenhos animados na pequena tela de casa. Após o almoço, passava parte da tarde a assistir um programa infantil muito famoso no Brasil, o Glub Glub, exibido na TV Cultura.

Um desenho, especificamente, me chamava a atenção. Era, como dizia na época, uma “animação de massinha” (ou seja, em stop motion e feita com pequenas esculturas). Dois amigos do sexo masculino passavam pelas mais absurdas situações e, geralmente, dentro da casa de um destes. Do ato de se colar papel para decorar suas paredes até os momentos em que cozinhavam juntos; inexistia um momento de tranquilidade para esses personagens. A sequência de atos atrapalhados e equivocados dava lugar a momentos tragicômicos: objetos quebravam, o espaço da casa era tomado por inundações e o número de explosões não era pequeno.

Nunca soube o nome deste desenho animado, mas a passagem do tempo não me fez esquecer de suas imagens. Mais forte do que o visual, porém, era uma peça de sua trilha sonora; um som repetitivo de gaita cuja reprodução por cantarolar era simples. Por anos o fiz para pessoas em diferentes momentos da vida (escola, universidade, trabalho) e a lembrança coletiva do desenho era ativada. Qual, porém, o seu título?

Vinte anos se passaram e eis que, por motivos variados, fiz uma viagem até Praga, capital da República Tcheca. Ao caminhar por seu centro histórico, pequena não foi minha surpresa ao esbarrar com diversos fantoches de um popular personagem de outro desenho animado: Krtek, uma simpática toupeira criada por Zdenek Miller. Após assistir ao episódio “Krtek e a mamãe”, em que é mostrado de modo claro o parto de uma coelha, fiquei intrigado com a transparência desse desenho infantil e resolvi assistir todos os seus episódios curtos.

Do universo da toupeira para um panorama do cinema de animação tcheco. Através dessa ampliação da pesquisa, para minha surpresa, eis que descubro a identidade dos dois atrapalhados personagens aqui citados: Pat e Mat ou, como chegaram ao Brasil, Zeca e Joca. O som da gaita ganhou um contexto, a assinatura de Lubomir Benes e Vladimir Jiranek e um corpo de cerca de oitenta episódios. Dividi esta descoberta com amigos e mais de uma vez tive como resposta a surpresa deles.

A fechar este ciclo de coincidências (ou do “destino”), redigi um texto intitulado “Krtek e o universo ao redor”, uma breve interpretação da Toupeira e de como ela se coloca em relação às situações dadas em seus episódios. Meses depois tomei conhecimento da realização da Mostra de Cinema Tcheco no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, São Paulo e, agora, Rio de Janeiro.

Creio que este evento se trata de uma boa oportunidade para sermos introduzidos à história do audiovisual na República Tcheca. Poucos foram os eventos realizados em solo brasileiro que visavam traçar panorama semelhante ao dado pela Mostra de Cinema Tcheco. Poderia destacar, por exemplo, a retrospectiva parcial da obra de Jan Svankmajer, que a Curta Cinema realizou em 2008 e, ainda a ser realizado em 2012, uma retrospectiva da obra de Milos Forman, aqui representado por “Baile de bombeiros”, no Rio de Janeiro.

A justaposição de outras animações tchecas como “Pequeno grilo e cachorrinho” ao lado do documentário “Marcela” e de dramas com cunho histórico como “Num céu azul escuro” e “Protetor” faz com que o público não tenha uma apreensão unitária e homogênea desta produção audiovisual. Narrativas cômicas enfocadas em pequenos grupos de personagens, mas que não deixam de lado a relação entre vida privada e História, são encontradas nos premiados “A minha pequena aldeia” e “Solitários”. 

Espera-se que esta aproximação cultural entre Brasil e República Tcheco pelo viés do audiovisual dê outros frutos e proporcione outros recortes para futuros eventos – geográficos, de gênero, autorais. Que os dois países possam fazer uma parceria tal qual Zeca e Joca – claro, sem as suas atrapalhadas aventuras, mas mantendo o mesmo clima de amizade e companheirismo dos personagens. Que os filmes aqui a serem projetados possam marcar outras crianças ou gerações posteriores tal qual o som de uma gaita está impresso na memória de um grupo de pessoas até o presente.


Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (realizada na Caixa Cultural de Brasília e São Paulo, 2011), o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, a Mostra do Filme Livre e o Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora.  Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). Realizador de curtas-metragens como "Boiúna" (2004), "A respiração" (2006) e "Preguiça" (2009).

1 comentários:

Anônimo disse...

Adorei seu texto, obrigado por te descoberto o nome da aniamcao stop motion!

Victor

29 de agosto de 2014 às 15:01

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