quarta-feira, 21 de março de 2012

Literatura (nada) Infantil




No texto anterior, para introduzirmos o assunto, procuramos situar o leitor de maneira geral sobre a problemática do jogo de ditos e interditos nos discursos, afirmamos ainda que “é no domínio da arte que as vozes silenciadas, os gritos contidos, os ditos interditos tem se revelado” e acrescentamos que, neste espaço da revista Contemporartes, “procuraremos a cada mês dar vez a uma voz” especialmente relacionando à nossa pesquisa acadêmica que tem se detido “no mapeamento de autores que problematizaram esteticamente a resistência ao regime de exceção de 64-84/5”. Aprendi com uma professora – acho que – de Antropologia da Universidade Federal do Pará, que o pesquisador tem o seu foco de pesquisa, inclusive institucionalizado, com projeto, portaria e carga horária definida, mas que ele deve ter também (preferencialmente dentro do mesmo foco) uma pesquisa para diversão. A minha pesquisa “B” é com a coleção TABA – histórias e músicas brasileiras, sobre a qual já escrevi informalmente e já publiquei no espaço de crônicas de meu site, no texto Escritor, por quê?. E sobre a mesma já orientei monografias, artigos, escrevi artigos acadêmicos...


O que mais me chamou a atenção na coleção é que eu me encontrei com ela em dois momentos diferentes da minha vida. Na época em que foi publicada (1981-2), quando eu estava na infância e obviamente minha leitura só comportava o entendimento de um discurso, e recentemente, já professor universitário e pesquisando Literatura de Resistência ou os vínculos entre Literatura e História Brasileira Recente. Na época, além de não conseguir ler o segundo discurso, não sabia – entre outras coisas – que a coleção tinha 40 volumes, pois só ganhei sete fascículos.


Muitas estratégias foram utilizadas pelos autores para driblar a censura ou devido a impossibilidade de representar realisticamente, embora simbolicamente, os tempos (mais que) difíceis da ditadura militar brasileira. As armas literárias contra a ditadura estavam disfarçadas em narrativas fantásticas, na ficção científica, em narrativas míticas, nas alegorias, no romance reportagem... e – pasmem! – na literatura infantil, ou na literatura produzida para crianças. Senti-me bastante gratificado ao saber que outro pesquisador se apercebeu de coisa semelhante, escreveu uma tese a respeito e a publicou em livro. Referi-me ao trabalho da professora Maria Lucia Marchens, Ruptura e subversão na Literatura para Crianças, em que a autora analisa a revista Recreio (1979) e a presença de novos autores como Ruth Rocha, Ana Maria Machado e Joel Rufino dos Santos, os mesmos presentes na coleção TABA – Histórias e Canções Brasileiras. Autores que promoveram certa renovação na literatura para crianças e souberam dialogar com os adultos sobre problemas nada infantis em textos (?) para o público infantil.


Na coleção TABA, as narrativas abordam temas relacionados à liberdade, seja a simples liberdade de um papagaio em Currupaco Papaco, de Ana Maria Machado, seja a liberdade de um menino escravo em O Mistério de Zuambelê, de Joel Rufino dos Santos. Outras temas relacionados a políticas da época, especialmente a políticas públicas federais, como a crítica feita aos financiamentos de casas populares que seriam pagas pelos brasileiros em “suaves prestações mensais” por duas décadas e meia, em Malandragens de um Urubu, de Sylvia Orthof (que também tematiza a liberdade). Mas todas, de um modo ou de outro, trazem uma reflexão sobre o momento político da ditadura e, sendo publicadas em 81-2, algumas trazem uma reflexão da intelectualidade brasileira pós-anistia (sobre esse assunto publicarei um artigo intitulado O que será do amanhã: hipóteses sobre o futuro do Brasil democrático em narrativas para crianças publicadas na pós-anistia): afinal após a reinstalação da democracia, o que iria acontecer? Um processo de conciliação nacional entre opressores e oprimidos? Essa conciliação só iria acontecer com as gerações seguintes? Um novo momento totalitário e ciclo oscilando democracia com ditadura? Uma “desforra” (revanchista?) dos oprimidos? A chegada a uma democracia de fato?


Bastante intrigante é O Bicho Folhagem, de Sonia Robatto. Uma avó conta aos netos a história da raposa e da onça, que não se entendem e mantém uma briga sem fim e sem motivo, como são “as brigas de família”. A onça sempre fazendo armadilhas para pegar a raposa. Numa delas, finge-se de morta, mas a raposa, sem se aproximar, diz que sua vó quando morreu espirrou; onça ouvindo isso, espirra duas vezes e revela seu disfarce. Em outra tentativa de pegar a raposa, a onça fica deitada na beira da única lagoa, assim a raposa não teria onde beber água e morreria de cedo. A raposa, entretanto, passa mel no corpo, rola numas folhas e se passa por Bicho Folhagem. Quando vai à lagoa, bebe água com tanta ânsia que deixa escorrer pelo corpo e termina estragando o disfarce. A história termina com a onça correndo atrás da raposa e a vó dizendo aos netinhos que aquilo nunca iria acabar “como certas briguinhas aqui de casa...”


A narrativa é intrigante por causa da hipótese relacionada ao contexto político-histórico da ditadura/anistia. Se as narrativas tematizam (representam, simbolizam, alegorizam) questões históricas relevantes e há um discurso silenciado que está em todas elas no interdiscurso, o que representa a vó que conta a história e a briga sem fim da onça e da raposa?


Como meu objetivo aqui, não é didatizar, ou explicar mastigadinho, mas provocar reflexão a fim de trazer à tona a voz silenciadas, convido o leitor a (tentar) responder. Quem se atreve ou se habilita?




Abilio Pacheco é professor universitário, escritor e organizador de antologias. Três livros publicados. É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense (com sede em Marabá), integra o conselho de redacção da Revista EisFluências, de Portugal, é Cônsul dos Poetas Del Mundo para o Estado do Pará e é Embaixador da Paz pelo Cercle Universal des Ambassadeurs de la Pax (Genebra-Suiça).

Site: www.abiliopacheco.com.br.


6 comentários:

Anônimo disse...

Professor Abílio Pacheco, é muito importante esse seu texto, ao dia que se comemora o Dia Mundial da Poesia, onde seu artigo é ligado a literatura.Meus Comprimentos,
Efigênia Coutinho

21 de março de 2012 às 16:40
Anônimo disse...

PROFESSOR ABILIO... primeiramente, sou grata por fazer parte os seus endereços eletrõnicos e sempre receber artigos postados por ti.
E, depois, bom saber tambem que pessoas como voce, entre outros, se interessam e tentam especializar na Literatura Infantil. Pena que, na realidade, o que se vê são crianças, cada vez em numero maior, desde da mais tenra idade, na frente de computadores gravando em suas pequenas mentes ilustrações, temas e sons dos mais absurdos possíveis.E, pior ainda, é sabermos que os pais, na sua grande maioria, são incentivadores pois trata-se de um "brinquedo" mais prático para os dias tão curtos e atarefados que eles vivenciam.

21 de março de 2012 às 17:34
ELIANE POTIGUARA disse...

parabens pelo belo texto, muita luz.

21 de março de 2012 às 22:22
Lúcia Laborda disse...

Realmente existia um conteúdo disfarçado, em diversas literaturas infantis. Esse foco, pode até mesmo ter sido reflexo de atos falhos. Mas eles estavam lá, escritos por detrás de figurinhas. A maioria das crianças, não faziam ligações entre o momento político e o pano de fundo das historinhas, mas elas circulavam pelas casas, de mão em mão. Bem como, essas mensagens se faziam presentes e gritantes em diversas musicas.
Parabéns pela crônica! Bjs

22 de março de 2012 às 12:15
Gleyson disse...

A notória observação de Abilio Pacheco revela uma Ditadura ainda subsistente, oculta e camuflada - pouco perceptível numa simples contemplação de tais historinhas "nada" infantis. Por tanto, há reminiscências da década de 60, tatuadas no Governo por muitos "Atos" políticos, que manipulam e corroem a nação.

24 de março de 2012 às 08:53
Anônimo disse...

As coleções devem ser analisadas e discutidas pelo grau de importância que têm em nossa história.
Gleyson, graduando em Letras-UFPA.

24 de março de 2012 às 08:56

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