Literatura (nada) Infantil
No texto anterior, para introduzirmos o assunto, procuramos situar o leitor de maneira geral sobre a problemática do jogo de ditos e interditos nos discursos, afirmamos ainda que “é no domínio da arte que as vozes silenciadas, os gritos contidos, os ditos interditos tem se revelado” e acrescentamos que, neste espaço da revista Contemporartes, “procuraremos a cada mês dar vez a uma voz” especialmente relacionando à nossa pesquisa acadêmica que tem se detido “no mapeamento de autores que problematizaram esteticamente a resistência ao regime de exceção de 64-84/5”. Aprendi com uma professora – acho que – de Antropologia da Universidade Federal do Pará, que o pesquisador tem o seu foco de pesquisa, inclusive institucionalizado, com projeto, portaria e carga horária definida, mas que ele deve ter também (preferencialmente dentro do mesmo foco) uma pesquisa para diversão. A minha pesquisa “B” é com a coleção TABA – histórias e músicas brasileiras, sobre a qual já escrevi informalmente e já publiquei no espaço de crônicas de meu site, no texto Escritor, por quê?. E sobre a mesma já orientei monografias, artigos, escrevi artigos acadêmicos...
O que mais me chamou a atenção na coleção é que eu me encontrei com ela em dois momentos diferentes da minha vida. Na época em que foi publicada (1981-2), quando eu estava na infância e obviamente minha leitura só comportava o entendimento de um discurso, e recentemente, já professor universitário e pesquisando Literatura de Resistência ou os vínculos entre Literatura e História Brasileira Recente. Na época, além de não conseguir ler o segundo discurso, não sabia – entre outras coisas – que a coleção tinha 40 volumes, pois só ganhei sete fascículos.
Muitas estratégias foram utilizadas pelos autores para driblar a censura ou devido a impossibilidade de representar realisticamente, embora simbolicamente, os tempos (mais que) difíceis da ditadura militar brasileira. As armas literárias contra a ditadura estavam disfarçadas em narrativas fantásticas, na ficção científica, em narrativas míticas, nas alegorias, no romance reportagem... e – pasmem! – na literatura infantil, ou na literatura produzida para crianças. Senti-me bastante gratificado ao saber que outro pesquisador se apercebeu de coisa semelhante, escreveu uma tese a respeito e a publicou em livro. Referi-me ao trabalho da professora Maria Lucia Marchens, Ruptura e subversão na Literatura para Crianças, em que a autora analisa a revista Recreio (1979) e a presença de novos autores como Ruth Rocha, Ana Maria Machado e Joel Rufino dos Santos, os mesmos presentes na coleção TABA – Histórias e Canções Brasileiras. Autores que promoveram certa renovação na literatura para crianças e souberam dialogar com os adultos sobre problemas nada infantis em textos (?) para o público infantil.
Na coleção TABA, as narrativas abordam temas relacionados à liberdade, seja a simples liberdade de um papagaio em Currupaco Papaco, de Ana Maria Machado, seja a liberdade de um menino escravo em O Mistério de Zuambelê, de Joel Rufino dos Santos. Outras temas relacionados a políticas da época, especialmente a políticas públicas federais, como a crítica feita aos financiamentos de casas populares que seriam pagas pelos brasileiros em “suaves prestações mensais” por duas décadas e meia, em Malandragens de um Urubu, de Sylvia Orthof (que também tematiza a liberdade). Mas todas, de um modo ou de outro, trazem uma reflexão sobre o momento político da ditadura e, sendo publicadas em 81-2, algumas trazem uma reflexão da intelectualidade brasileira pós-anistia (sobre esse assunto publicarei um artigo intitulado O que será do amanhã: hipóteses sobre o futuro do Brasil democrático em narrativas para crianças publicadas na pós-anistia): afinal após a reinstalação da democracia, o que iria acontecer? Um processo de conciliação nacional entre opressores e oprimidos? Essa conciliação só iria acontecer com as gerações seguintes? Um novo momento totalitário e ciclo oscilando democracia com ditadura? Uma “desforra” (revanchista?) dos oprimidos? A chegada a uma democracia de fato?
Bastante intrigante é O Bicho Folhagem, de Sonia Robatto. Uma avó conta aos netos a história da raposa e da onça, que não se entendem e mantém uma briga sem fim e sem motivo, como são “as brigas de família”. A onça sempre fazendo armadilhas para pegar a raposa. Numa delas, finge-se de morta, mas a raposa, sem se aproximar, diz que sua vó quando morreu espirrou; onça ouvindo isso, espirra duas vezes e revela seu disfarce. Em outra tentativa de pegar a raposa, a onça fica deitada na beira da única lagoa, assim a raposa não teria onde beber água e morreria de cedo. A raposa, entretanto, passa mel no corpo, rola numas folhas e se passa por Bicho Folhagem. Quando vai à lagoa, bebe água com tanta ânsia que deixa escorrer pelo corpo e termina estragando o disfarce. A história termina com a onça correndo atrás da raposa e a vó dizendo aos netinhos que aquilo nunca iria acabar “como certas briguinhas aqui de casa...”
A narrativa é intrigante por causa da hipótese relacionada ao contexto político-histórico da ditadura/anistia. Se as narrativas tematizam (representam, simbolizam, alegorizam) questões históricas relevantes e há um discurso silenciado que está em todas elas no interdiscurso, o que representa a vó que conta a história e a briga sem fim da onça e da raposa?
Como meu objetivo aqui, não é didatizar, ou explicar mastigadinho, mas provocar reflexão a fim de trazer à tona a voz silenciadas, convido o leitor a (tentar) responder. Quem se atreve ou se habilita?
Abilio Pacheco é professor universitário, escritor e organizador de antologias. Três livros publicados. É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense (com sede em Marabá), integra o conselho de redacção da Revista EisFluências, de Portugal, é Cônsul dos Poetas Del Mundo para o Estado do Pará e é Embaixador da Paz pelo Cercle Universal des Ambassadeurs de la Pax (Genebra-Suiça).
Site: www.abiliopacheco.com.br.
6 comentários:
Professor Abílio Pacheco, é muito importante esse seu texto, ao dia que se comemora o Dia Mundial da Poesia, onde seu artigo é ligado a literatura.Meus Comprimentos,
21 de março de 2012 às 16:40Efigênia Coutinho
PROFESSOR ABILIO... primeiramente, sou grata por fazer parte os seus endereços eletrõnicos e sempre receber artigos postados por ti.
21 de março de 2012 às 17:34E, depois, bom saber tambem que pessoas como voce, entre outros, se interessam e tentam especializar na Literatura Infantil. Pena que, na realidade, o que se vê são crianças, cada vez em numero maior, desde da mais tenra idade, na frente de computadores gravando em suas pequenas mentes ilustrações, temas e sons dos mais absurdos possíveis.E, pior ainda, é sabermos que os pais, na sua grande maioria, são incentivadores pois trata-se de um "brinquedo" mais prático para os dias tão curtos e atarefados que eles vivenciam.
parabens pelo belo texto, muita luz.
21 de março de 2012 às 22:22Realmente existia um conteúdo disfarçado, em diversas literaturas infantis. Esse foco, pode até mesmo ter sido reflexo de atos falhos. Mas eles estavam lá, escritos por detrás de figurinhas. A maioria das crianças, não faziam ligações entre o momento político e o pano de fundo das historinhas, mas elas circulavam pelas casas, de mão em mão. Bem como, essas mensagens se faziam presentes e gritantes em diversas musicas.
22 de março de 2012 às 12:15Parabéns pela crônica! Bjs
A notória observação de Abilio Pacheco revela uma Ditadura ainda subsistente, oculta e camuflada - pouco perceptível numa simples contemplação de tais historinhas "nada" infantis. Por tanto, há reminiscências da década de 60, tatuadas no Governo por muitos "Atos" políticos, que manipulam e corroem a nação.
24 de março de 2012 às 08:53As coleções devem ser analisadas e discutidas pelo grau de importância que têm em nossa história.
24 de março de 2012 às 08:56Gleyson, graduando em Letras-UFPA.
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