terça-feira, 7 de agosto de 2012

Quando a cozinha vira açougue



http://www.youtube.com/watch?v=EY9_DMYKoDk


“Escravas da vaidade”, longa-metragem de 2004, dirigido por Fruit Chan, traz duas personagens principais. De um lado, uma mulher com uma obscura biografia trabalha fazendo bolinhos em sua casa. Do outro, uma atriz de televisão que enfrenta o ostracismo após o auge de sua fama e que enfrenta a passagem do tempo. Na busca por um elixir da juventude, a segunda personagem visita a casa da quituteira. O que começa em um misto de humor e suspense dá corpo a um cinema do absurdo.

Após as primeiras refeições, somos apresentados à rotina ausente de glamour da personagem: numa casa enorme e em reforma está presente também um marido que a trai com mulheres mais jovens. Saber sobre esse fato apenas contribui com sua ânsia pela juventude. Enquanto isso, a cozinheira é mostrada diversas vezes se deslocando entre Hong Kong e a China, sempre munida de uma pequena marmita. Curiosamente, a personagem passa por um hospital onde parece que foi buscar algo que daria sentido às suas viagens...

O conteúdo vermelho presente nos quitutes é revelado. Mais do que se tratar de carne humana, estamos a observar o fatiar de algo mais sagrado: é matéria advinda de abortos, ou seja, fetos. Em dado momento, a cozinheira descreve para sua cliente que os fetos ideais são aqueles do segundo trimestre, pois já começam a apresentar parte da estrutura óssea, algo nutritivo e importante para o rejuvenescimento. O estômago do espectador embrulha.


Neste sentido podemos afirmar que mais do que mostrar um ambiente de culinária, “Escravas da vaidade” se transforma em um filme ambientado em um açougue doméstico. Aquele cutelo, na verdade, fazia espirrar o sangue de algo ainda em processo de formação biológica a caminho de ser expelido do ventre de uma mulher. Aquilo não era um molho de tomate, mas sangue humano. Para ter uma aparência mais jovem (ou seja: não se trata de voltar no tempo, mas parecer com menos idade – questão de superfície, não de núcleo), qualquer esforço é pequeno.

Em dado momento, ao ter a confirmação efetiva de uma traição de seu marido através da gravidez de sua amante, a personagem ávida por bolinhos se pergunta: e se este feto que se desenvolve em seu corpo fosse cozinhado e ingerido por ela? Incapaz de engravidar, o ato de se fatiar, mastigar, engolir e ter a proteína da carne de um produto do esperma de seu marido em sua corrente sanguínea é uma prova de seu desespero e insegurança.

Quando nos convém, o ofício do açougueiro é rapidamente aprendido. De médico e louco, todos temos um pouco.










Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Doutorando em História e Crítica da Arte pela UERJ. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (Caixa Cultural de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, 2011) e "Cinema pós-iugoslavo" (Caixa Cultural de São Paulo, 2012). Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP) e da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA).

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