quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Um visto para o amor



Ela tinha acabado de desembarcar de mais uma viagem, queria ter ficado lá, mas seus deveres menos dignos esperavam pelo cumprimento. Queria eternizar o superficial, o mágico, o bem viver que encontrou nos rostos sorridentes das tardes quentes vividas na terra da alegria. Pensou sobre sua vida, em como se libertar das amarras da instituição total, e se deu conta que deveria mudar, olhar para outros cantos, desenterrar a delicadeza e o amor que estavam soterrados na burocracia e amarras.

Ele surge cauteloso, inquisidor, desejando respostas e afirmações claras. Dizia coisas sobre fatos, verdades, certezas, certos e errados, perturbava-a com seus pedidos. Exigia que ela tomasse posição. Abriu o processo para verificar se ela tinha condições de adentrar naquele território sombrio e secreto. Disse-lhe, que talvez pudesse lhe conceder um visto para o amor. As condições seriam postas em contrato. Todas as mensagens gravadas, fotos arquivadas, análise e perícia embasariam a decisão final.

El@s compartilhavam o ceticismo político, ela um tanto paranóica, ele materialista. Juntos compartilhavam o sublime decanato dos peixes, talvez envolt@s pelas "forças do universo", que decidiram criar ali um laço, talvez eterno, talvez sutil, mas profundamente intenso. Exigentes e crític@s, desfiavam palavras duras contra tudo o que discordavam, compartilhavam amargura, revolta e uma profunda vontade de abandonar tudo aquilo que @s marcou nos últimos tempos.

Ele lhe pediu que o olha-se nos olhos, suspeitou de sua beleza triste, queria ver tudo o que ela sempre quis guardar. Ele já não aceitaria reservas, queria plenitude, exigiu que fossem postas as cartas na mesa. Questionava-lhe sobre os detalhes das coisas, buscava uma autenticidade que pudesse lhe dar garantias, um terreno seguro para pisar. Ela, movediça, tentava lhe mostrar a dinâmica da vida, sua impenetrabilidade, o sagrado, o profano, as perspectivas que derrubam as certezas desejadas. Levou-lhe às divagações apaixonadas, ele lhe trazia de volta para o pequeno porto onde se encontravam. Provocado, ele tentou avançar, ela, temerosa, desconversou.

Ele transitava pelos mundos, grande viajante, havia descido há pouco tempo por essas terras brasileiras. Ela, índia selvagem, domesticada até certo ponto, mas jamais civilizada. Pairavam sobre as culturas que lhes acolhiam e compartilhavam os muros que corações frágeis erguem para proteger grandes tesouros. Desejavam-se, temiam-se, conversavam olhando nos olhos, com lábios carnudos loucos para se tocarem, mãos trêmulas que almejavam a segurança dos laços que os levariam adiante. E tudo se tornava obscuro em meio a luz, já não podiam olhar para suas vidas, sem pensar um no outro. Era insuportável, ele diria que era bom, ela que era seguro, embora as âncoras estivessem distantes e os barcos fossem arrebatados pelas fortes ondas do mar.

Ela tinha tomado a decisão, talvez precipitada, não sabemos, de entregar um pouco de si, talvez tudo. De tentar viver aquilo sem amarras, sem ter que prestar contas ao seu mantenedor. Ele mantinha cautela, apresentava mapas, demonstrava perigos e questionava: você quer mesmo embarcar? Tem certeza? Sem resposta, ela virou-se e lhe revidou com mais perguntas:

O que é isso que nos consome sorrateiramente, nos perturba a razão, faz tremer o corpo, desperta o desejo, faz desabrochar a doçura e a sensibilidade, nos perturba com uma dose de sonho e realidade? Por que a vida é tão mais deliciosa quando mitificada? Queria poder me entregar eternamente ao que é mais belo, leve e sublime, para me libertar da obscuridade que invadiu minha alma, mas temo me aprofundar na escuridão se eu me envolver neste jogo perigoso. Ainda me lembro do final trágico de mais um enlace, intenso e rápido, me levou ao céu e ao inferno em poucos segundos e deixou um vazio sem fim.

Mas o que é a vida para além da superfície? Quero que me leve ao mar, que percamos o chão de vista, que arrisquemos tudo o que temos. E se este mar nos consumir, que nos leve às profundezas, pois é nas profundezas que sentimos as delícias mais fortes e as decepções mais devastadoras.

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.


1 comentários:

Ana Dietrich disse...

que lindo e forte, intenso... o mar, uma metáfora bem explorada nesse conto, traduz as inquietações, as tempestades pessoais da narradora. Se entregar ou não ao mar, ir as profundezas ou ficar boiando nas superfícies, lindo... Bom, para parar e pensar. Sutil também o momento da entrega do sim-não tremulante. Parabéns, Taty.

11 de agosto de 2012 às 15:35

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