sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Hegel, Williams e João Antônio




            O Sistema Hegeliano, principalmente quanto às colocações postas em Preleções sobre e Estética, somado às contribuições de outros pós-katianos, como Fichte em Conceito da Doutrina-da-ciência, e Schopenhauer com Sobre a Escrita e o Estilo, prestou (e ainda presta) grandes contribuições para a Crítica, a Teoria e a Produção de arte em geral. No capítulo IV do Volume I, Plano Geral da Estética, logo em princípio, Hegel trata da “arte como uma emanação da ideia absoluta”, entenda-se por ideia absoluta o que foi trabalhado por Kant, dizendo sobre a “representação sensível do belo”. Devemos relembrar que o sensível está aqui anunciado como passível de ser sentido, aberto ao campo dos sentidos, e o belo não se resume à beleza-comum, mas ao sublime e elevado.
            A Arte tem por função conciliar a ideia (os costumes, as ideologias, o social, o cultural e etc) e a representação sensível (pela pintura, música, literatura, escultura e etc). O Conteúdo, sendo nutrido pelo Espírito de seu tempo, pede que haja uma nova Forma para representa-lo, sendo essa mais adequada ao material que se deve representar. Para o filósofo alemão, o desencontro entre Forma e Conteúdo, o não estabelecimento do processo dialógico e interdependendo em que sem a Forma o Conteúdo não se objetiva e sem o Conteúdo a Forma não é necessária, levaria a obra ao caos e ao fracasso enquanto Arte.
            Sendo assim, toda mudança de conteúdo ocasionaria uma mudança na forma e, estando o Espírito do Tempo em constante alteração, o conteúdo se renovaria continuamente reforçando e reformulando a necessidade de uma nomeada forma. No entanto, a ideia de Hegel sobre a representação, ou seja, o processo mimético da Arte com relação ao Real, encara a atividade  do artista enquanto um espelho, estando fadada ao erro se afastada, em Forma e Conteúdo, da sua Realidade “mantenedora”.    
            Levantadas estas considerações sobre a Estética Hegeliana, devemos buscar o que viria a ser, de certa forma, uma continuação “moderna” e repensada desse sistema. Nas palavras de  Maria Elisa Cevasco, em seu Prefácio à Edição Brasileira da coletânea Política do Modernismo:

“[...] a partir da aceleração do processo de industrialização no final do século XVIII, foi-se criando um modo de pensar a cultura que a contrapunha à sociedade, considerando a primeira como um espaço autônomo composto, nas palavras de um dos pensadores centrais dessa tradição, Matthew Arnold, de “doçura e luz”, um refúgio espiritual a salvo dos conflitos da vida real”.

            Esta visão, se tornaria preponderante e definiria toda a tradição ocidental do pensamento sobre cultura. Em meado só século XX, seria rompida drasticamente por Raymond Williams.
            Produto de seu tempo, o estudioso bolsista de Cambridge construirá uma tradição oposta, onde, segundo Cevasco, “a produção cultural é fundamental na reprodução da sociedade e está profundamente imbricada em seus conflitos e lutas, cujas marcas moldam a própria estruturação dos modos de dar sentido à vida, sejam eles obras de elaboração artística densa ou tipos de organização e instituições sociais”. Como podemos observar, não se fala mais em representação, mas sim em reprodução da realidade social (Espaço-temporal) que circunda e perpassa o sujeito-artista. Como exemplo, o aparecimento da Arte Efêmera em nossa época que, segundo Ferreira Gullar, contradiz o que de mais permanente o homem criou, e “não propõe nada”, ou se propõe a não propor, “apenas adota, como fundamento ideológico, o carácter efêmero que o consumismo impôs à sociedade atual”. Que outro tipo de arte poderia surgir de uma época onde nada mais é feito para durar? Se a arte segue o Espírito de seu Tempo e é nutrida pela sociedade que a “produz”, nada mais seguro que apontar as causas da Arte “Passageira”.
            Em O campo e a Cidade, Williams demonstra, de maneira mais clara e direta, que “a Literatura não só reproduz os sentidos criados socialmente mas que também os produz contribuindo para moldá-los”. Dessa forma, a Literatura translitera o real, traduz de forma a recriar e remodelar a própria sociedade, sendo produto e produtora da realidade social.
            Afim de elucidar melhor a recriação em contra-senso da representação, faremos uso do conto de João Antônio, Televisão, publicado em 2011 no livro Abraçado ao meu rancor. Na hi(e)stória, Jacarandá, um trabalhador rural da Agricultura Familiar, tipo muito comum na sociedade brasileira (principalmente depois do selo criado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário para incentivo às cooperativas agricultores rurais) tem se visto no embate do que cultivar. Saia de casa todos os dias banhado, de roupas limpas, sapato engraxado e tomava o rumo da
Maio / 2011
Cidade com o objetivo de conseguir financiamento para começar o plantio que, neste ano em particular, não seria de arroz, milho, trigo ou feijão (as culturas alimentares não têm dado assim tanto dinheiro com o aumento das pesquisas em biocombustível) a soja é o produto da vez: cultiva-se, faz-se a colheita, vende-se para as esmagadoras, que vendem para as usinas, que vendem para o povo, que compram de todo mundo. Dessa vez seria Menta, não outra coisa, seria menta.
            Após inúmeras tentativas sem exito, de Banco à Banco e de Humilhação à Humilhação, constata Jacarandá, “entre arrepiado e estarrecido, que vivia numa época em que os bancos só emprestavam dinheiro para quem já tinha de sobra”. E não poderia ser diferente, pois aqui está o Inferno dos Devedores e o Paraíso dos Investidores, o Brasil é o pais que possui a maior taxa de Juro Real do mundo, mas o nosso pobre herói não sabe disso. “Quem não divide sofre em dobro”, alerta o narrador quanto ao silêncio do protagonista que, envergonhado com a situação, não "divide" nada com a família.
            Tomado pela psicose que assola a sua época, Jacarandá comia pouco e dormia ainda menos. Quem dera se antes fosse um tal casmurro Dom que, gastando o tempo em horta, jardinagem e leitura, comia bem e não dormia mal. Não era este o caso. Vivia os dias que o Estresse elegeu.  Retornado para casa, depois de muita luta e derrota e fracasso, olha o nosso herói para a tela da tevê. O que a caixa mostra é a virtualidade, o ideal da propagando, o programa que programa quem o deixa programar. Quem o haveria de não deixar? Em meio a tanta realidade, a tanta velocidade, a tanto fim e começo, quem nesse mundo haveria de ser homem no mundo? Jacarandá não tinha escolha, era porque tinha de ser e pronto.
            As estradas da tela não tinham barro, nem buracos. Os automóveis eram sempre novos e sempre eram para toda a gente. Aviões brilhavam cortando os ares, as locomotivas dos trens eram moderníssimas, potentes, rápidas. Nada disso era parte da "realidade-real", vivida e sentida no barbear de todas as manhãs para mais um dia de frustrações. No entanto, diz o narrador, “uma maravilha, em especial, o encafifava”.         

Todos os gerentes de bancos prometiam facilidade, jovens, bem vestidos e melhor falantes, bons cidadãos em dia com o imposto de renda, e insistiam em esclarecer que os estabelecimentos bancários eram uma espécie de segundo lar. Estendiam sua proteção a todas as criaturas desvalidas.            

            Estafado, preso entre a realidade sentida e a realidade assistida, “Jacarandá sacou seu 38 e disparou bem no meio da cara do gerente”. O funcionário ilustre do banco não morreu, porque não era Real, mas o nosso herói, além de buscar dinheiro para a lavoura, agora vai precisar de uma televisão nova.
            O conto de João Antônio exemplificada, magnificamente bem, o que começamos por explicar em Hegel e terminamos por dizer em Williams. A cibercultura, a cultura do efêmero, a sociedade em rede, o fenômeno capitalista, a situação do Agricultor Familiar, a situação financeira e as taxas no Brasil, tudo o que envolve o contexto de uma época que, por sorte ou azar, é a nossa, está recriado, transliterado e objetivado em forma de conto pelo sujeito que experiencia esse meio. A arte é um processo contínuo onde se cria e recria para se produzir e reproduzir continuamente. A sociedade e a obra de arte, reciproca e concomitantemente, são matérias primas  e produtos de si.



Lucca Tartaglia está onde Deus é servido conceder-lhe que seja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonos. Gradua-se (ou Graduam-no) na Faculdade de Letras e Artes (mais uma que outra) da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Ocultismo em Fernando Pessoa – Ele Mesmo) e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais)

1 comentários:

João disse...

Interessante observar um amadurecimento intelectual. A intencionalidade do pensamento deixa entrever certo atrevimento estimulante, atualmente em falta no "mercado" acadêmico. As postulações hegelianas relativas ao fim da arte, calcadas na predominância do conceito ao longo da sociedade moderna, encontrou nas vanguardas europeias uma resposta perigosa, mas contundente ao fim da arte em sua relação com o real. A mímesis deixa agora de ser concebida como imitatio, equívoca tradução latina... Enfim, texto interessante pelo que contém de arroubo intelectual. Caso não conheçam, indico, sobre esta questão, dois importantes trabalhos teóricos:

BLUMENBERG, Hans. "Imitação da natureza": contribuição à pré-história do homem criador. In: Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, pp. 87 - 135.

COSTA LIMA, Luiz, Trilogia do controle. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
Resenha da "Trilogia" por Emílio Maciel, professor do Departamento de Letras da UFOP:
http://periodicos.uesb.br/index.php/floema/article/viewFile/445/478

Boa sorte!

4 de janeiro de 2014 às 12:20

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