A reescritura (homo) erótica de Camões por Al Berto
Uma
boa dose de poemas bons sempre é necessário para o fluir dos dias, das semanas
e da vida. Pensando nisso, e aproveitando as minhas últimas leituras poéticas,
hoje, trago aqui um poeta português que merece muito mais atenção e estudos,
trata-se de Al Berto. Essa
nomenclatura curiosa, sulcada, nada mais é do que o pseudônimo de Alberto
Raposo Pidwell Tavares. Um escritor (poesia, prosa, teatro) e artista plástico
português (estudou pintura na École Nationale Supérieure d’Architecture et des
Arts Visuels - La Cambre -, em Bruxelas), nascido em Coimbra, em 1948 e que
morreu em junho de 1997, aos 49 anos.
Al Berto
surgiu como poeta nos anos 70, do século XX, época essa em que as estruturas do
regime totalitário português estavam se desfazendo, numa atmosfera pautada por
novas experiências e demandas que viriam a possibilitar a Revolução dos Cravos –
consequentemente, a queda do regime salazarista, após quase 50 anos sob o jugo
político e opressor fascista. Em um momento de liberdades em latência, Al Berto assume uma postura poética
bastante combativa, escrevendo poemas que pensam o exílio, o país e trazendo para
o novo contexto português democrático uma escrita referente a um sujeito
(poético e carnal) homossexual. Ele buscou em seus escritos transgredir aquilo
que era interdito até então, tanto social como historicamente.
Um
dos elementos que mais ressalta aos leitores da obra Al Bertiana é o corpo. O
corpo que é vivo e que, através da escrita, permanecerá ao longo do tempo. Para
o professor e ensaísta Emerson Inácio (2004), em Al Berto o corpo é um sinal motivador da escrita. Corpo possuidor
de desejos, anseios e subjetividades. Um corpo dotado de memória, de história,
que revela as experiências e vivências, estabelecendo um discurso forte sobre o
corpo homoerótico. Na poesia desse autor, o homoerotismo é sua condição de
vida, sendo um trajeto fundamental para a produção literária: “se preciso for
dormirei mesmo durante o dia/ nos braços dum pastor adolescente que me ensinará/a
rápida vertigem da noite ... a sodomia terna das cabras” (AL BERTO, 2009, p.
269). Nos poemas de Al Berto, nos
deparamos com um corpo que fala e que, através de seus movimentos, move a
escritura do poema e da própria história, como ocorre em“Auto-retrato
com revólver”:
as
palavras foram alinhavadas pelos preguiçosos dedos
o
texto transparece na claridade das manchas de tinta
teço
a ausência dum corpo que me é absolutamente necessário, doem-me
estes
gestos
estas
coisas cobertas de pó sobre a mesa: papéis amarrotados, fotografias, cartas
interrompidas, objectos quebrados, sinais ténues de gordura e de fundos
de
chávena
lápis,
cigarros esboroados, o revólver
num
dos cantos inacessíveis da casa, as aranhas vão construindo ninhos diáfanos
segregam
sábios labirintos em perigosa baba
sinto-me
vazio, hoje
a
compreensão do mundo escapa-me, pouco me importo com isso
está
tudo muito calmo, em redor da casa, o jardim quieto
poderia
passar o dia a ler, por desfastio, à maneira dos príncipes persas
a
tarde torna as madeiras rubras, aquece
os
livros parecem de pedra em seu arrumo cauteloso
ao
alcance está o revólver
perto
da mão que nunca aprendeu a escrever, aquece ao simples contacto
dos
dedos
a
outra mão, a direita, definhou um pouco quando aprendeu o silencioso
ofício
eu
explico: hoje deve ser domingo
e
a mão esquerda masturba enquanto a direita escreve com destreza, sem
cessar
mais
tarde, escrevia eu
poderiam
as mãos trocar de ofício
o
revólver tingir-se-ia de tinta permanente, o papel apresentaria o terrível
sulco
de uma bala.
(Al
Berto, 2009, p. 170)
Esse poema “com
revólver”, a meu ver, parte da escrita do corpo físico para o papel, no qual “as
palavras foram alinhavadas pelos preguiçosos dedos”. E há aqui uma relação entre
a escrita e o esquecimento pautada na obliteração do sujeito físico e na permanência
do eu poemático (“teço a ausência dum corpo que me é absolutamente necessário”)
e, por isso, a grafia, os movimentos que a perpassam doem. Uma dor de quem
conhece-se perecível e transitório e sabedor de quem um dia, assim como os “[...]:
papéis amarrotados, fotografias, cartas/ interrompidas, objectos quebrados,
sinais ténues de gordura e de fundos/ de chávena/ lápis, cigarros esboroados, o
revólver”, estará coberto de pó.
A escrita desse poema é
pautada na violência, representada pelo revólver. E, para mim, o verso “e a mão
esquerda masturba enquanto a direita escreve com destreza, sem/ cessar” é uma
espécie de releitura dos camonianos “Qual Cánace, que à morte se condena;/ Nua mão sempre a espada e noutra a pena”
(Grifos meus, Lus., VII, 79). Relembremos o fato de que na passagem d’Os Lusíadas em que esses versos estão
localizados quem fala é o poeta e, comparando-se a Cánace, personagem
mitológica que foi forçada pelo pai a suicidar-se como punição por ter mantido
uma relação incestuosa com um de seus irmãos, o poeta refere-se a si mesmo como
um suicida, prenunciando a morte do autor, na qual a espada que carrega consigo
será utilizada para a sua própria morte – morte física, uma vez que a pena o
imortalizará. Al Berto reescreve os
versos camonianos, agora em um tempo novo, com possibilidades de vivência outras,
fazendo com que a espada camoniana seja agora aproximada ao pênis sendo
masturbado (lembro que nas culturas de língua portuguesa o objeto espada é correlacionado diretamente à ideia de másculinidade, virilidade, que advém do fato de se possuir um pênis), com a busca do prazer carnal, o qual também é uma arma de luta
cultural, libertação, como também de morte. E na outra mão al bertiana, assim
como na de Camões, a pena continua a trabalhar, apesar do “[...] caminho tão árduo,
longo e vário!” (Lus., VII, 78) com o
qual o poeta tem que se deparar diariamente.
E, ao fim do poema, a imagem do
pênis sendo constringido é substituída pelo revólver, como podemos vislumbrar
nos versos “a mão esquerda masturba enquanto a direita escreve com destreza,
sem/ cessar/ mais tarde, escrevia eu/ poderiam as mãos trocar de ofício/ o
revólver tingir-se-ia de tinta permanente, o papel apresentaria o terrível /
sulco de uma bala.”. Há, pois, uma estreita relação entre
espada-pênis-revólver, elementos através dos quais os poetas revelam a
perenidade corporal, diante da pena e da “tinta permanente” que dela vem.
Trocando-se as mãos de ofício,
a esquerda a redigir, logo ela “que nunca aprendeu a escrever”, e a direita a
masturbar-se com esse pênis-revólver, o papel apresentaria, pois, “o terrível
sulco de uma bala”. E um sulco duplo, pois o mesmo papel receberia, por um
lado, a tinta da pena e, por outro, a outra marca resultante desse
pênis-revólver. Ao pensar nisso, me ocorre somente uma ideia: de que a própria
escrita estaria marcada pelo erotismo dos movimentos que provêm do corpo, pois,
ao fim do poema, o resultado de tudo é a união dos três ofícios pelo eu realizados,
a saber: o manuseio da arma, do pênis e da pena, e “o revólver tingir-se-ia de
tinta permanente”.
Por sua vez, a escrita é como
no papel, como uma fenda, um abismo sem fim, ou melhor, utilizando uma imagem
de Jorge Luis Borges, como uma biblioteca de Babel, infinita, permanente e
inesgotável. E através desse recurso, o autor, no tempo a ele contemporâneo,
busca reescrever a história. E explico-me melhor: em tempos novos, diante de
momentos que possibilitam falar das subjetividades e existências outras - que
até então eram vilipendiadas – o autor utiliza-se do corpo como mecanismo
político de inscrição dos marginalizados na história.
REFERÊNCIAS
AL BERTO. O Medo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
CAMÕES, Luis Vaz. Os Lusíadas. 2ª ed. Porto:
Porto Editora, 1954.
INÁCIO, Emerson da Cruz. Outros Barões
assinalados: a emergência do discurso gay na produção literária portuguesa
contemporânea. In: VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais,
2004, Coimbra - Portugal. Atas do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de
Ciências Sociais. Coimbra - Portugal: VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de
Ciências Sociais, 2004. Disponível em: http://www.academia.edu/2377048/Outros_Baroes_assinalados_a_emergencia_do_discurso_gay_na_producao_literaria_portuguesa_contemporanea? Acesso 05. Out. 2013.
(Dedico esse texto ao meu Amigo e interlocutor: Paulo Ricardo Braz)
(Dedico esse texto ao meu Amigo e interlocutor: Paulo Ricardo Braz)
Rodrigo Corrêa Machado é colunista da ContemporARTES desde 2009, quando a revista foi criada. Juntamente com Ana Dietrich é coordenador desse periódico. Ele é professor substituto de literatura portuguesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e licenciado em Letras por esta mesma instituição. Seus interesses perpassem a Literatura em geral e, com ênfase especial na poesia portuguesa.
4 comentários:
Valeu, Rodrigo, e muito, por me dar a conhecer esse poeta que, não tivesse morrido tão cedo, estaria hoje com apenas um ano a menos que eu. Claro que vou procurar outros poemas do Al Berto, pois, já pelo título tão expressivamente usado como se o texto fosse um quadro, a poesia dele me convidou irresistivelmente à leitura. Bem como a sua resenha, um exemplo de clareza e simplicidade, excelentemente adequado ao veículo blogueiro. Por outro lado, tomo a liberdade de lhe apontar alguns senõezinhos: primeiro, embora tenha treslido o poema, não consigo identificar, só com ele, o homoerotismo que você atribui ao poeta, porque, óbvio, conhece dele outros textos. Há, sim, um evidente autoerotismo, mas, até onde vejo, o eu-poético está só, como se percebe em "teço a ausência dum corpo que me é absolutamente necessário". Segundo: não me tome como um gramaticoide defensor de "casticismos", mas, aqui e ali, seu texto careceu de uma revisão mais cuidadosa: em "... AS ESTRUTURAS do regime totalitário português ESTAVA se desfazendo numa ATMOSFERA pautadaS... por novas experiências,", os escorregões nas concordâncias verbal e nominal são cacos desmerecedores da qualidade de sua escrita. Além desse, agora um "caquinho" ortográfico: "julgo", ao invés de "jugo".
29 de maio de 2014 às 10:31Já no campo de sua visão da "espada" camoniana como símbolo fálico, sinto uma certa dificuldade em ler assim o verso lusíada. Em outro ponto, me foi também difícil entender um trecho inteiro: "...o poeta refere-se a si mesmo como um suicida, prenunciando a morte do autor, na qual a espada que carrega consigo será utilizada para a sua própria morte..." Como assim?! O poeta viria a suicidar-se com a própria espada? Camões morreu foi de tristeza, doente, na miséria...
Concluindo, Rodrigo: bela e inspiradora sua escolha do Al Berto e de seu poema. Mas, me permita a impertinência dos comentários acima e mais este: a aproximação entre o Al Berto e o Camões, num, o revólver-pênis, noutro, a espada e a pena me soa descabida e, portanto, dispensável à sua análise... Qualquer "caco" meu, por favor, aponte, está bem?
Olá Máriochico, agradeço os apontamentos. :)
29 de maio de 2014 às 12:56E esse texto foi escrito meio às pressas, motivado por uma aula que dei ontem sobre a poética de Al Berto. Como você poderá perceber, após a aula, fiz algumas outras considerações e mudei um pouco o texto também. Vou explicar somente algumas coisas que você pontuou.
A respeito da ideia do homoerotismo utilizada no título, desenvolvo-a conforme o meu pensamento acerca de um poeta fantástico que, assumidamente homossexual, traz uma escrita contestadora do pensamento e da cultura vigente, inclusive ao “reescrever” os versos camonianos que apontei. (É uma ideia minha, passível de questionamento como qualquer ideia, mas que, para mim, faz bastante sentido).
A respeito da aproximação camoniana, eu não disse que em Camões a espada é um símbolo fálico (talvez algo masculino, pois, que eu saiba, as mulheres peninsulares não lutavam nas guerras e não foram de navio descobrir as novas terras no oriente e na américa) e sim que, na minha leitura, Al Berto transfigura a imagem da espada camoniana em um pênis sendo masturbado. E eu não disse que se aproximam revólver-pênis e espada-pena. E sim que espada-pênis e revólver podem ser aproximados (no lado esquerdo, digo), enquanto o direito continua a árdua tarefa de escrever com a pena em mãos.
Sobre a morte do autor, o que é prenunciado é a do eu poemático que fala n'Os Lusíadas (a voz que fala no fim do Canto VII é a voz de um eu-poeta) e esse sujeito - que não é o Camões físico - acaba por prenunciar a sua morte ao comparar-se com Cánace, figura mitológica que suicidou-se.
Gostei da interlocução e, se quiser, conversar mais sobre poesia, fique a vontade para me enviar um e-mail (rodcorrear@hotmail.com).
Rodrigo
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