"Foi Clarice que me deu..."
Ia eu pel’Afonso Pena
olhando – sem tino – o prédio dos prédios e o aglomerado das coisas entre as
coisas. O meu pensamento – sem mais – ia: tudo caminhava ao lado de mim. Um carro
moto buzina e ônibus alto “alô?” cimento e tronco e máfaro e as pernas do mundo
que são pernas e ponteiros e números e “não importa”. Caminhava. Não era
distração o qu’eu tinha, nem tonteira ou basbaquice. Pensava paralelo ao pensamento,
não pedia nada, não evoquei por qualquer motivo ou divisão lógica as minhas
conjecturas habituais, mas atentei sem esforço – “é isso” – para o vão das cortinas.
“Estamos livres?” - Libertas Quæ Sera
Tamen (brinquei em voz baixa). Até que enfim. Chegou sem aviso a sensação.
Tudo era onde devia e parecia ser. Acima das minhas ideias, as coisas se apresentavam
como se fosse à primeira vez. “Não estou mais cego dos olhos”. Olhar nunca foi
o bastante. E a vontade crescia com a multidão, feroz e multiforme, para todos
os lados, engolindo a avenida, os pedestres, a Fundação Clovis Salgado, a banca
de revistas e a faixa e os edifícios e Bebu.
Ocorreu-me então (por piedade ou qualquer outra coisa)
adotar o mundo, ser pai desse coitado. Eu me senti padrasto da criação, da
terra, do povo. Não o substituto dele – aquele, o pai - mas o seu outro.
Com certa prepotência de glória, mas carinhosamente igual, eu deitei esforços
sobre o trono abandonado. Não houve objeção. Seria então um feriado, um largo
maior depois de tudo, o domingo – prolongado - de dominus. Ser-lhe-ia aceitável
a intimidade com que eu governava. O papel me era estranho, mas confortável e
natural, como se não houvesse antes me alcançado por falta de chamada. O
currículo para padrasto do mundo estava já sobre a mesa do homem. Sei que devemos amar a
deus sobre todas as coisas. Eu sei. “Existe maneira melhor?”. Amo a sua
obra e, se cabe a ele estar em tudo, amo o em tudo, por consequência: dou amor
à todas as coisas e – estando ele sobre elas – amo o também.
Seguia – o meu reino e as férias do homem – até que
me deparei com a menina morta. Uma menininha, sete ou outo, muito magrinha – a pobre,
de pele brancamarelada e perninhas de saracura. “Que banalidade”. Ali na
calçada, no canto do meio-fio, entre papeis de bala, enxurrada e folhas secas.
Com as vísceras e os pesinhos esmagados. Tadinha. Segui no passo.
Deus
deve mesmo estar satisfeito comigo. O desgaste foi da peleja. Auguste Comte o via como algo pré-moderno, fantástico, que deveria dar
lugar ao saber positivo – como se deus fosse um tradicionalista e nunca se atualizasse.
Marx – o marximo – com a coisa toda
do ópio, alienação e falsa consciência de quem se perdeu ou, tendo se
encontrado, voltou a se perder. Freud
– Sigmund Narizinho - com a ilusão neurótica em busca do desejo de proteção
pacificado e da transformação do mundo contraditório em suportável – “Ele tem
que ser insuportável?”. Sem falar de Weber,
Popper e Carnap e tantos outros... foi muita lambada. “Moço, essa carteira é sua?”. Virei-me. Um
rapazinho de doze, talvez quatorze anos, branco-moreno-pó, dos olhos fundos e
grandes e magros. “É sua, moço, caiu alí ó!”.
Susto. Gatilho.
Não senti quando minhas pernas começaram, quando meus olhos se trancaram para tudo. Era o mundo lá fora: existindo. A rua ficou em silêncio e eu só podia correr e as lágrimas corriam e os pelos esticavam como se quisessem correr também. Não, não é possível. Desci em uma das ruas laterais, embalado, bufando, com a mão travada no peito – para segurar o tamborim. Mas o moleque voltava à minha mente: fraco, pequeno, sujo, magro, engolido, só alma - sem carne, poderia ser irmão da mocinha. A MENINA. Meu deus, deus, deus... e não havia mais espaço. Lágrimas, secreção, gosma, vómito, náusea e mais vómito e choro e lágrimas. “O que eu fiz?”. A MENINA MORTA. No cantinho – pobre – sozinha entre as folhas e o lixo. “Ô Moçu, é sua cartera?” Continuava na minha cabeça. “Moçu, tá tudu beim?” Um galho seco esbarra. Abro os olhos. “Tá tudo beim, Moçu? U sinhô tá perdido? Qué ajuda?” Não era a minha cabeça, era Ele. Estava ali. Correra atrás de mim pela rua, descendo entre os cruzamentos. É claro que estou perdido – pensei. “Não, garoto, tudo bem”. “É quessa cartera caiu... é du sinhô?” O mundo inteiro era meu. Como ousa me resgatar, menino? Como você pôde me puxar de volta à humanidade quando eu era deus? Por que? “É sim, muito obrigado, agora vá”. “Tá tudu beim memo? U sinhô pareci cansadu”. “Eu sou um homem mau e você não quer conversar com um homem mau, certo?” “Eu cunheçu genti rúim, u senhô num pareci ruim”.
Não senti quando minhas pernas começaram, quando meus olhos se trancaram para tudo. Era o mundo lá fora: existindo. A rua ficou em silêncio e eu só podia correr e as lágrimas corriam e os pelos esticavam como se quisessem correr também. Não, não é possível. Desci em uma das ruas laterais, embalado, bufando, com a mão travada no peito – para segurar o tamborim. Mas o moleque voltava à minha mente: fraco, pequeno, sujo, magro, engolido, só alma - sem carne, poderia ser irmão da mocinha. A MENINA. Meu deus, deus, deus... e não havia mais espaço. Lágrimas, secreção, gosma, vómito, náusea e mais vómito e choro e lágrimas. “O que eu fiz?”. A MENINA MORTA. No cantinho – pobre – sozinha entre as folhas e o lixo. “Ô Moçu, é sua cartera?” Continuava na minha cabeça. “Moçu, tá tudu beim?” Um galho seco esbarra. Abro os olhos. “Tá tudo beim, Moçu? U sinhô tá perdido? Qué ajuda?” Não era a minha cabeça, era Ele. Estava ali. Correra atrás de mim pela rua, descendo entre os cruzamentos. É claro que estou perdido – pensei. “Não, garoto, tudo bem”. “É quessa cartera caiu... é du sinhô?” O mundo inteiro era meu. Como ousa me resgatar, menino? Como você pôde me puxar de volta à humanidade quando eu era deus? Por que? “É sim, muito obrigado, agora vá”. “Tá tudu beim memo? U sinhô pareci cansadu”. “Eu sou um homem mau e você não quer conversar com um homem mau, certo?” “Eu cunheçu genti rúim, u senhô num pareci ruim”.
Nada
mais me saía - perplexo. E lágrima: sussuro-soluço-silêncio. “Disculpa, moçu, eu num
sabia. A cartera num é sua?” “Eu é que te peço desculpas, meu amiguinho”. Ao
pai o que é do pai. Como eu poderia ser deus ou o segundo dele? Há muito para se
fazer sendo gente e sentindo frio e fome e sede. Ele está ali não está? Entre eles?
Aquela mocinha – no meio-fio – não estava sozinha. As pessoas, os prédios e as
coisas. O mundo renascia para mim – não em deus, mas nos homens (o que é dizer
o mesmo, de certa forma). É muito mais sentir e muito menos pensar. “Ô”. Quanta
tolice a minha: a megalomania natural da humanidade. “Ô”. Tanta filosofia,
teologia, biologia, tudologia, mundologia, coisologia e nós aqui, convencendo. É isso
também, claro, mas não só. Nunca e de forma alguma. “Êi”. O bracinho voltara a
me tocar. Com toda a digressão eu – mais uma vez – havia me esquecido da
realidade “lá fora”. Não sei quanto tempo o rapazinho ficou ali me olhando,
parado. “Me desculpa, mais uma vez”.
Disse eu - agora sorrindo. “Entaum mi paga um lanchi qui Eu ti perdoou”.
Lucca Tartaglia está
onde Deus é servido conceder-lhe que esteja, em companhia dos anseios,
desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado
das casas e dos sonhos. Graduou-se (ou Graduaram-no) na Faculdade de
Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa onde - por ocorrência - agora cursa o mestrado. É colunista na
ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área
de Literatura (Cabala e Estudos Pessoanos).
1 comentários:
Na vida existem duas coisas que devemos lembrar. A primeira é de nossa existência, a segunda é esquecer que existimos por nós. Caso não se lembre do último, me pague um lanche, que te perdoo.
25 de outubro de 2014 às 22:02Postar um comentário
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