Como se tivessem boca
“Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca”.
Alexandre O'Neill, in 'No Reino da
Dinamarca'
I
A palavra é líquida, gasosa – como pedra
(em) João Cabral. “Só mais um texto e algumas linhas”, você diz. Minha cabeça é
um mar de monstros entre Pessoa, Whitman, o Antônio Treva da torradeira, o
Augustinho Pimenta e a dona Zélia da feira triste. Eu mesmo, falando de palavras,
falo: elas são a substância e o silêncio. Presas no intervalo de dois vagos -
no vão da boca.
Existindo para fora de
tudo e para dentro de todos, se escrita, a palavra é o retrato de um Morto. A
lembrança de uma forma e de um espírito, de um sorriso, de lábios e lágrimas e
agruras e de nada ou ninguém.
Se a palavra escrita vive?
Não. Não como dizem. A palavra escrita revive, ainda que nunca tenha estado
viva. Ela re-nasce nos que a podem viver - ainda que nunca tenha nascido. O que
vive nela é que foi vivo - o que encheu o seu contorno, perpassou o seu miolo e
a preencheu – a matéria sua mãe, a genitora febril. Posta na gaveta, como um
embalsamado em seu túmulo, torna-se apenas esquecimento e espera.
II
Sophia de Mello
Breyner Andresen escreveu, em O Nome das
Coisas:
[...]
Pois é preciso saber que a palavra é
sagrada
Que de longe muito longe um povo a
trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
[...]
Damos e demos nome a tudo, mas continuamos
buscando o indizível. Se o encontramos – ou acreditamos tê-lo encontrado – nomes
surgem, a ordem retorna e a busca recomeça. Estamos sempre procurando. Todos nós. De ouvidos atentos.
“Obrigado”
“Boa-noite” “Amigo” “Cachorro-quente”
“Literatura” “Motor” “Maçã”
“Hidrogenado” “Dois, por favor”
“Paralelepípedo”
Qual será? Onde? Quando? “Certa palavra
dorme na sombra de um livro raro” – disse Carlos D. “É a senha da vida”, ele
diz, “a senha do mundo”. Procurar é preciso, encontrar não é preciso. Talvez, a mais importante de todas as
palavras, a rosa dentre as letras, seja sempre aquela do por vir. A coisa viva
que paira silente. Talvez... a palavra buscada transborde
para além de qualquer morfologia. Sim, ela deve ser amorfa e conservar para si
todos os significados.
A verdádi é queu uZo seim sabê uZá.
Eugênio de Andrade - de seu Obscuro Domínio – me fala “das palavras
desamparadas e desertas”, fascinadas pelo silêncio. “Como anjos caídos que
sonham voltar para o céu?” - pergunto. Eugênio não responde.
Seu silêncio é o resto do poema.
É uma ode infinita que prossegue.
É uma ode infinita que prossegue.
Uma romaria para além do último ponto.
E pela porta de mim, dos olhos que
tenho, entra Daniel Faria contando sobre Homens
que São como Lugares Mal Situados. “Encaixo-me”, digo a ele... e ele diz:
“Conserto a palavra com todos os
sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por
dentro
Ilumino-a
Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em
exame
Ela não se come como as palavras
inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome
Perco-a e recupero-a como o tempo da
tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela
E ilumino-a”
Ricardo Reis se
intromete - “Severo narro. Quanto sinto, penso. Palavras são ideias”. Começo a
sentir náusea. Quero me livrar das palavras, mas como me livrar das ideias?
Tenho tudo que sou traduzido de Mim para Português. Preciso me anteriorar. Recorrer
ao caminho de Adélia Prado, em Bagagem,
e perseguir “o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde
nasce o «de», o «aliás», o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível muleta
que me apoia”. Fuçar com a minha fuça o “_______”. “Quem entender a linguagem
entende Deus cujo Filho é Verbo”. Voltar, voltar para antes do antes, para
quando era o Princípio. Distante. Na distância impossível de um passo. “A
palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser
calada” – sussurra Adélia. “Já não quero dicionários consultados em vão” -
volta Drummond com A Paixão Medida
nas mãos - “Quero só a palavra que nunca estará neles nem se pode inventar”.
Pois...
...vivamos a Palavra.
E parece mais claro
agora. Pra você não? Com se estivesse mais sincero, mais firme na minha cabeça.
A senha da vida, do mundo, do Carlos. Não pode ser outra, não é? Não poderia
ser outra. Tem que ser esta. Que pequena e comum isso que ela é. Que possível e
simples também.
Quem poderia imaginar
que a palavra-passe de tudo seria...
2 comentários:
lindo!
12 de março de 2015 às 18:41Gentileza sua, Lari.
15 de março de 2015 às 23:57Muito obrigado.
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