Vai em vôo o “Gavião de Penacho”.
Primeiramente desculpem-nos pela ausência desta nossa coluna de poesia na última segunda-feira. Problemas de força maior nos impediram de fazer a matéria antes.
Nesta semana a nossa coluna de poesia como a vida está triste, silente e cabisbaixa devido a perda do grande poeta marginal
Roberto Piva, que faleceu na tarde deste último sábado (03/07/2010) aos 72 anos, no Instituto do Coração, em São Paulo.
Referenciado às vezes como poeta anarquista ou poeta maldito, Piva tentava viver a própria arte à maneira de alguns de seus mestres (Whitman, Rimbaud, Artaud, Pessoa, etc) e sua poesia parecia trazer um surrealismo redesenhado para os nossos dias. Ousada, combativa, social, libertária, mística, transgressora, homoerótica e provocativa, são alguns dos adjetivos atribuídos à poesia piviana. Melhor que falar do poeta (a poesia dele fala por si mesma), trouxemos aqui alguns depoimentos tecidos sobre ele e também alguns poemas deste grande poeta para compartilhar com vocês.
Influenciado pelos movimentos "surrealista" e "geração beat", o poeta estreou na década de 60 na "Antologia de Novíssimos", publicada por Massao Ono em 1961 e em 1963 edita o seu primeiro livro "Paranóia". Publicou ainda: Piazzas, 1964; Abra os olhos e diga ah!, 1975; Coxas, 1979; 20 Poemas com Brócoli, 1981; Antologia Poética, 1985; Ciclones, 1997. Recentemente Roberto Piva teve os seus poemas reunidos e editados pela editora Globo em 3 volumes: Um Estrangeiro na Legião: obras reunidas, volume 1, 2005 Mala na Mão & Asas Pretas: obras reunidas, volume 2, 2006 Estranhos Sinais de Saturno: obras reunidas, volume 3, 2008.
O que ele já disse:
"A maioria dos que você chama de 'mandarins bem-pensantes da cultura' não passa de um bando de galinhas assustadas. Eles tentam fazer pressão sobre minhas assumidas irregularidades de comportamento como forma de me enquadrar. Se eu me enquadrasse, eu ganharia página inteira na imprensa conformista. Eles gostariam que eu me calasse sobre tudo, mas eu não me calo sobre nada. Para essa canalha, o meu pecado é ser poeta e intelectual na total insubordinação". – em entrevista de 1983 – O Estado de São Paulo.
O Que já disseram dele:
“Um dos maiores nomes da poesia marginal brasileira.” – Jornal O Globo, em 04/07/2010.
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"A associação de Piva ao surrealismo, embora correta, pela presença da imagem, não pode esconder uma característica evidente em Ciclones: o uso da nomeação direta. Sua extrema concretude poderia até servir para vinculá-lo ao objetivismo anglo-americano, ao poetizar, não um mundo de abstração formal, porém o que está a sua frente e que ele vive. Essa característica, evidente desde Paranóia, o transformou no poeta das referências geográficas precisas, desde a Praça da República dos meus sonhos de 1963 até as Ilha Comprida, Jarinu e Cantareira deste último livro, tanto quanto das suas já notórias declarações enfáticas de pederastia, igualmente modos da manifestação direta, sem circunlóquios. Ele quer que as coisas recebam seus nomes: teu cu fora da lei/ teu pau enfurecido/ alegria de anjo/ nas estradas do prazer. Para Piva, um pau sempre foi um pau e um cu é um cu, tanto quanto uma rosa é uma rosa. Por isso, pela clareza, por ser o grande inimigo do eufemismo na poesia brasileira, e nem tanto pela obscuridade, hermetismo, caráter iniciático e intertexto, é que se explica um esfriamento crítico-acadêmico com relação a sua obra." - Cláudio Willer - poeta, sobre o livro "Ciclones".
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“Noto que Piva, poeta superior a 95% dos que aí estão, tem fé na palavra e, digamos, muita fé na contrarreligião, representada pelo xamanismo. Não se esqueça que xamãs são caciques, ou seja, chefes, detentores de segredos, e não só mágicos, salvadores da humanidade – o que se choca, em termos relativos, com sua própria poesia, que se pretende libertária. Talvez a graça de sua presença e poemas resida nessas contradições tão veementes de uma pessoa doce.” – Régis Bovincino, poeta, na resenha “Roberto Piva, Entre o Mito e o Mérito”.
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"Por último, devo referir aqui que a literatura de Piva leva a sério, mais do que qualquer outra coisa, o poder da própria literatura. É literatura embebida em literatura, que respira literatura, que fala o tempo todo de literatura. Um levantamento sem qualquer intuito de exaustividade encontra, em Paranóia, referências explícitas a Mário de Andrade, Dostoiveski, Lautréamont, Rilke, Garcia Lorca, Machado, Rimbaud, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Dante, Whitman, Leopardi, Tolstói, Oscar Wilde, Gide, Kierkegaard, Artaud etc. Se passarmos a Piazzas, estão lá, além de vários dos já citados, Maiakovski, Nietzsche, Rimbaud, Blake, Mary and Percy Shelley, Sade, Baudelaire, Isaac Asimov, Villon, Apollinaire, Michaux, Byron, Swift, Jarry etc. etc. Predomina, mas sem hegemonia, a linhagem maldita do romantismo, o que ajuda a esclarecer o fato de que, mesmo neste primeiro volume, quando o aspecto laico da profanação é mais evidente, a literatura já se insinue como limiar do sagrado. O caminho da transgressão significa, nestes termos, supor que a literatura é, por excelência, o lugar onde ainda se sustenta e respira uma potência resistente à institucionalização da vida. Tanto o interdito de significação, quanto o ritmo exaltatório estão ambos a serviço desse ato de proclamação, sem dúvida crente, de uma espécie de onipotência poética, exercida na libação irrestrita e anárquica do sexo e de toda sorte de excessos voluptuosos." - Alcir Pécora - no prefácio do livro "Um Estrangeiro na Legião".
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"Piva é uma usina viva de poesia, inconformismo e celebração do delírio sexual como forma de conhecimento. Além disso, ele detém um conhecimento raro, de uma linhagem de poetas xamânicos, que poucos conhecem com tanta familiaridade no Brasil. Apesar de marginalizada durante muitos anos, a obra de Piva permanece viva e admirada por muitos artistas que vieram depois dele." - Ademir Assunção, poeta e jornalista, na Revista Brasileiros”.
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“Um dos poetas mais celebrados das últimas décadas, Roberto Piva marcou o panorama literário brasileiro. O poeta compôs uma obra que aliava os movimentos de contestação da década de 60 umas doses de surrealismo pouco comum ba tradição poética brasileira.” – Folha de São Paulo, em 04/07/2010.
Alguns Poemas de Roberto Piva
LIBELO
Não mais trarei justificações
Aos olhos do mundo.
Serei incluído
”Pormenor Esboçado ”
Na grande bruma.
Não serei batizado,
Não serei crismado,
Não estarei doutorado,
Não serei domesticado
Pelos rebanhos
Da terra.
Morrerei inocente
Sem nunca ter
Descoberto
O que há de bem e mal
De falso ou certo
No que vi.
(Roberto Piva, in: Antologia dos Novíssimos, 1961)
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Jorge de Lima, panfletário de caos
Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima
enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia presente
na minha memória devorada pelo azul
eu soube decifrar os teus jogos noturnos
indisfarçável entre as flores
uníssonos em tua cabeça de prata e plantas ampliadas
como teus olhos crescem na paisagem Jorge de Lima e como tua boca
palpita nos bulevares oxidados pela névoa
uma constelação de cinza esboroa-se a contemplação inconsútil
de tua túnica
e um milhão de vagalumes trazendo estranhas tatuagens no ventre
se despedaçam contra os ninhos da Eternidade
é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado
querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve
estar como um talismã nos lábios de todos os meninos.
(Roberto Piva, in: Paranóia, 1963).
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Paranóia
Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das
beatas
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação.
(Roberto Piva, in: Paranóia, 1963).
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Piazza V
"Oswald Spengler tem uma
porta no seu tornozelo
& nuvens através dele
limpando a pele
que projeta
um velho cachecol marrom
em seu olho
eu penso
pelos seus
líquidos compassos de sátiro
até
um cenário de músculos
impedido de esmagar
o carvão de
vidro verde
que aquece
a estrela nua de
anteontem
Oswald Spengler tem uma porta no seu tornozelo
batendo
até
altas horas".
(Roberto Piva, In:Piazzas, 1964)
Ilustrações: 1- O poeta Roberto Piva; 2- Roberto Piva; 3- Capa do livro “Um Estrangeiro na Legião”; 4- Metamorfose de Narciso, de Salvador Dali.
Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve às segundas-feiras no ContemporARTES. Contará com a colaboração de Marilda Confortin (Sul), Rodolpho Saraiva (RJ / Leste) e Patrícia Amaral (SP/Centro Sul).