Literatura angolana e alteridade: uma reflexão


Queridos Leitores, hoje, resolvi compartilhar com vocês um pouco das minhas recentes descobertas sobre a Literatura Angolana, mais especificamente, no período pré-independência.

Para aqueles que não sabem m uito acerca da História de Angola, é importante ressaltar que este país foi colônia portuguesa até 1975. Como caracteriza o processo de colonização, a terra foi explorada, o povo escravizado. A repressão era uma forma bastante utilizada pelo colonizador. Diante desse quadro, a população – não só de Angola, como das demais ex-colônias portuguesas em África, como Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique, em 1961 – se revoltou contra o colonialismo e ,em 1961, teve início a Guerra Colonial que durou até 1974.

Antes mesmo do início da guerra pela libertação angolana, já havia pessoas descontentes com o colonialismo. Pessoas estas que sonhavam com a liberdade, que desejavam a igualdade, que não queriam mais se sentir estrangeiras em sua própria terra. Dentre estas, muitos escritores, que, através das palavras, davam voz aos sonhos de tantos e tantos outros angolanos. Há um poema, com o qual desejo exemplificar algumas destas postulações, chamado “As africanas” de Cordeiro da Matta:

As africanas (1884)
(Ao capitão J. J. Ornelas)

Quando outro tempo
vi retratadas
gentis, mimosas
e delicadas
as formosuras de brancas cores –
todas primores,
filhas da Europa;
pensava então
que nestes climas
jamais havia
belezas primas,
que as africanas
eram horrendas
e muito feias,
sem terem prendas
que maravilhem!

Foi ilusão;
que este torrão
também possui
magas belezas, que se não são –
como as francesas –
tão provocantes
e encantadores
são mui galantes
e sedutoras.

Embora negras,
elas dão gozos –
como outras dão –
apetitosos.

São amorosas.
Seus corações
ateiam fogos
de mil vulcões.

Sob aspecto
enegrecido
que fino ouro anda escondido!

Agora tenho
credo profundo
de haver belezas
em todo mundo.

Esse poema de 1884, tempo bem anterior à revolução, no qual Portugal explorava incessantemente a terra africana, já emergia entre os africanos uma noção de que não eram inferiores aos brancos. Em “As africanas”, qualquer possível comparação que relegue aos negros um lugar inferior em relação aos brancos é questionada.

Para mim, apesar de no trecho “Embora negras,/ elas dão gozos”, eu perceber uma certa carga de preconceito, podemos entender este poema como uma metáfora da contestação e da autoafirmação da negritude. Este poema, elaborado por um negro, tem como um eu-lírico um negro que diz perceber que, apesar do que dizem sobre a superioridade da mulher branca em relação à negra, ele não observa esse aspecto superior. Como observei em outros poemas – que não transcreverei aqui, para que o texto não fique extenso em demasia – surge uma percepção de que a mulher branca é muito frágil, quase intocável, enquanto a negra é forte, vai à luta, não tem medo de enfrentar os problemas da vida e da terra.



Por um lado, observamos uma nítida contestação da ideia de superioridade branca, enquanto por outro há a autoafirmação da alteridade do negro através do reconhecimento de seu valor, da percepção de que é digno de respeito e de que sua cor não o torna inferior a ninguém e a nada, pelo contrário, é uma cor digna de admiração, por causa de toda beleza que carrega consigo.

Outros autores e outras obras também são importantes para reconhecimento e afirmação da alteridade do ser humano negro africano, que foi, por muitos anos, explorado e subjugado. A literatura em África, como em muitos outros lugares, foi e é um meio através do qual surgem denúncias de problemas, busca de igualdade e principalmente exigência de respeito, que TODOS merecem.

A luta em África ainda não terminou. Muitas pessoas continuam a buscar respeito e melhorias sócioeconômicas para as terras africanas das quais durante séculos foram retiradas tantas e tantas riquezas.






Rodrigo C. M. Machado é Graduando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa e, neste momento, pesquisa a representação dos corpos na poesia de António Botto. 
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I WANT YOUR LOVE


I WANT YOUR LOVE E O
DESMAPEAMENTO DO HOMEM CONTEMPORÂNEO

I want your Love impressiona logo assim que o assistimos. Travis Mathews, o diretor, faz uma excelente contribuição para os queer studies quando tenciona questões caras a esses estudos, como as de sexualidade. Diferentemente dos essencialistas, que creem em uma natureza humana estática, determinada pela estrutura genética, Mathews rasura o conceito de masculino mostrando que a sexualidade não é algo biologicamente definido, mas, culturalmente e socialmente determinado por construções conceituais que tem sofrido enormes mudanças e transformações através da história.

Começamos dizendo, pois, que I want your love ao fazer uma crítica radical da categoria de identidade masculina interroga, ao mesmo tempo, nossa própria experiência contemporânea, mais desviante, desenraizada, mais difusa, mais confusa, mais plural.

Esse texto caminhará nessa direção, tentando localizar esses corpos dentro da grande aventura contemporânea, como contrapartidas ao corpo absoluto, resultado feliz de todas as normas regulatórias reiteradas e mantidas engenhosamente por inúmeras instâncias, por meio de uma multiplicidade de práticas, discursos e estratégias, que resultam em verdadeiros corpos dóceis, pensei como Foucalt.

Nessa sociedade singular destacamos o corpo submisso à racionalidade, o corpo rotineiro e previsível, vigilante e controlado. O homem aqui desde jovem é submetido a constantes provações de virilidade, observando-se uma preocupação que evidencia traços de misoginia e homofobia. A negação tríplice mencionada por Badinter define bem a particularidade da aquisição dessa identidade masculina: “Por três vezes, para afirmar uma identidade masculina, deve convencer-se e convencer os outros de que não é uma mulher, não é um bebê e não é um homossexual”. (Badinter 1993: 34).

Assim, o “macho divinizado” se torna o modelo de supremacia absoluta do masculino que vigorou na sociedade ocidental de maneira inquestionável durante muito tempo, ou seja, todo esse projeto prevê uma sequência, uma viagem, como pensou Guacira Lopes Louro
“precisa e coerente entre sexo, gênero e sexualidade. O sexo (definido como macho ou como fêmea) deverá indicar um gênero (masculino ou feminino) e implicar uma única forma de desejo (dirigida ao sujeito de sexo/gênero oposto). O ato de nomear o corpo acontece, portanto, no interior de uma lógica binária que supõe o sexo como um dado anterior à cultura e pretende lhe atribuir um caráter definitivo e a-histórico” (2010:205).

Considerando, no entanto, as transformações culturais que tão reconhecidamente afetam a vida contemporânea, é importante sustentar que a diversidade de atores é um elemento fundamental para compreender as dinâmicas sociais. Nesse sentido, o lugar da identidade masculina está da mesma maneira implicada nessas transformações. O papel masculino teve seu lugar de autoridade tradicional na história, assumindo certos espaços de autoridade e poder, contudo essa identidade está em disputa de modo mais categórico e o desmapeamento contemporâneo inaugura uma série de questões que ainda não estão resolvidas. Por isso, o curto volume de pesquisas sobre este sujeito deixa um campo de investigação ainda inexplorado.

Nesse mesmo cenário líquido, os meios de comunicação da contemporaneidade exercem um grande papel para a desestabilização das identidades culturais. Seu caráter disseminador de informações é investido de fortes intencionalidades e exerce influência poderosa e permanente na constituição do aparecer público.

Em I want your Love (2009) dois amigos, interpretados por Jessé Metzger e Brenden Gregory, negociam de maneira lúdica e em forma de brincadeira, a maneira própria de fazerem sexo juntos pela primeira vez. Da sutileza de olhares à luta de corpos másculos, passando por grandes crises de riso, aos poucos, vão se entregando entusiasticamente ao sexo. Entre o sexo real e a honestidade da interpretação naturalista dos atores, Mathews vai embaralhando os limites entre o erótico e o pornográfico e desafia os conceitos estratificados de sexo e gênero.

Quando o diretor Travis Mathews propõe romper os espaços fixos e finitos da identidade masculina, partindo do princípio de que a sexualidade não possui significados a priori, mas significados relacionais que se constroem, narrativas que se produzem, questiona o caráter unitário da subjetividade e, principalmente, as idéias liberais referentes à autonomia do indivíduo e o conceito de comunidade com base no princípio da uniformidade. Os corpos livres de I want your love ampliam nossa percepção sobre a experiência humana para além das regras e normas. Quando esses corpos param de se preocupar com a cartografia do desejo, assumem-se como estranhos, esquisitos, arriscam novos mapeamentos e, como navegantes em mares nunca d’antes navegados, descobrem-se maiores, estrangeiros, diferentes. Características assumidas sem receios ou constrangimentos, por quem se considera queer.

Com Guacira Lopes Louro, concordamos que:
“para esses, parece que importa mais vagar, descompromissada e livremente, do que chegar a algum destino; eles/elas desejam experimentar, perder-se no caminho, errar mais do que cumprir um trajeto e fixar-se numa posição. Talvez porque queer seja melhor compreendido se for tomado como uma nova posição, como um jeito de estar e de ser, e, vez de se considerado uma nova posição de sujeito ou um lugar social estabelecido. Queer indica um movimento, uma inclinação na qual parece implícito um tom perturbador. Mais do que uma nova identidade, queer sinaliza um modo de estar no mundo” (LOURO, 2010, P. 210).

Surgida a partir dos Estudos Culturais, fruto de uma inseminação acadêmica que combina teoria social, arte contemporânea, produção artística e ativismo, portanto, longe da seara da Sociologia e Antropologia, a Teoria Queer já tendia a priorizar a análise de obras artísticas e midiáticas como é I want your Love.

A perspectiva queer permite-nos uma análise crítica das questões acerca das relações, representações e discursos relacionados ao sexo, sexualidade e gênero de forma a não reduzirmos a complexidade de tais questões a binarismos simplificadores como macho/fêmea, heterossexualidade/homossexualidade ou masculinidade/feminilidade.

Além disso, os estudos contemporâneos acerca da masculinidade são um campo fértil para o debate sobre a mídia e sua influência na constituição dos estilos de vida. A grande rede, em especial, é um espaço de frescor e reciclagem de referências num momento em que as identidades tornaram-se elementos de extrema fragilidade frente ao líquido mundo moderno das sociedades democráticas. Como sintetiza Hall (2003: 8): “Um tipo de diferente mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”.

DESMAPEAMENTO PÓS-MODERNO
O advento de teorias pós-modernas, pós-estruturalistas e pós-feministas tornou possível o surgimento de novas interpretações sobre a vida social. A experiência individual, nesta perspectiva, é aberta à experimentação e as identidades se fragmentam, se flexibilizam diante de um universo cultural em constante mutação. A velocidade acelerada do processo de modernização da identidade masculina acabou por resultar na aquisição de novos ideais e identidades que não vieram exatamente alterar os antigos, mas se sobrepuseram a eles.

Assim, em tempos líquidos e incertos o desmapeamento gera desorientação e conflito, além do aparecimento da indagação “quem é o homem de hoje? Ou, como refletir no contemporâneo a masculinidade?

Mais uma vez com Guacira Lopes Louro:
“Entre tantas marcas, ao longo do século, a maioria das sociedades vem estabelecendo a divisão masculino/feminino como uma divisão primordial. Um divisão usualmente compreendida como primeira, originária ou essencial e, quase sempre relacionada com o corpo. É um engano, contudo, supor que o modo como pensamos o corpo e a forma como, a partir de sua materialidade “deduzimos” identidades de gênero e sexuais seja generalizável para qualquer cultura, para qualquer tempo e lugar” (LOURO, 2004, 76).

Para pensar a masculinidade, em I want your love, utilizaremos o conceito de performatividade de gênero, desenvolvido por Butler, em seu “Problemas de Gênero” (2008). Para a autora(1) não há corpos que estejam fora do discurso de representação: não há corpo pré-discursivo. O corpo só se torna inteligível quando inscrito dentro de categorias de gênero bem definidas, o que ocorre mesmo antes do nascimento de uma criança, quando destacamos se o feto será menino ou menina. Butler não vê o sujeito livre para evitar as normatizações, muito ao contrário, o sujeito é constituído a partir dessas normas e mediante sua repetição. Os corpos se tornam textos, falas que se constroem para serem percebidas e reconhecidas. Assim, Butler aplica o sentido amplo de performatividade à produção da identidade, que implica sua concepção como resultado de um processo de repetição.

Se para a autora norte-americana, o gênero constitui-se de um modo performativo, isto quer dizer que não há uma substância essencialmente “feminina” ou “masculina”, ou seja, ela desloca a ênfase na identidade como descrição, como algo pronto, “algo que é” para a idéia de “tornar-se”, dando ao conceito de identidade um sentido de movimento e transformação.

Com isso a noção de performatividade de gênero pode contribuir - e muito - para a desmistificação da heterossexualidade compulsória. À medida que I want your love assume a identidade de gênero enquanto performance, elucida a possibilidade da gradual liquefação da fronteira dualista entre feminino e masculino e esta desmistificação significa a produção de diferentes identidades não categorizáveis.

Ciente disso, Travis Mathews, junto com Butler, buscou desvelar os mecanismos sociais que estabelecem imposições identitárias e colapsou a distinção entre sexo e gênero de modo a argumentar que não há sexo natural, pré-existente à sua inscrição cultural. O gênero não é algo que se é, mas algo que se faz, um ato, ou melhor, uma sequência de atos.

I want your love é uma potencialidade variante que enriquece o discurso contemporâneo sobre identidade e sexualidade e oferece aos agentes a possibilidade de viver novas maneiras de ser homem.

NOTA:
(1) Judith Butler (24 de fevereiro de 1956, Cleveland, Ohio) é uma filósofa pós- estruturalista estadunidense, que contribuiu para os campos do feminismo, Teoria Queer, filosofia política e ética. Ela é professora da cátedra Maxine Elliot no Departamento de Retórica e Literatura Comparada da University of California em Berkeley.

Bibliografia
BADINTER, Elisabeth. XY: sobre a identidade masculina . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
LOURO, Guacira Lopes. Um Corpo Estranho: Ensaios Sobre Sexualidade e Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
____________________. Viajantes Pós-Modernos II. In: LOPES, Luiz Paulo da Moita & BASTOS, Liliana Cabral (orgs). Para além das identidades – Fluxos, movimentos e trânsitos. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2010.
OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Ed. UFMG/ IUPERJ, 2004.



Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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MULHERES PODEROSAS



Num mundo povoado por egos dispersos, onde tantos se atraem e tantos se repelem – para confirmar as descobertas de Newton, impossível impedir as etiquetas. Eu e você. Nós e os outros. Ele e ela. E tudo que se classifica se hierarquiza. Classificar é resultado da separação. Hierarquizar é resultado da comparação. Você notou que quase automaticamente começamos pelo "ele" ao falarmos "ele e ela"?

Resolvi fazer uma pequena experiência: coloquei no Google "mulheres poderosas" e a maioria dos resultados falava não em mulheres, mas em "homens preferem mulheres poderosas", "homens temem mulheres poderosas"... Sempre eles!

E essa visão masculina de um mundo inegavelmente masculino vem se tornando um mecanismo de defesa deles. Afinal, a inserção crescente no mercado de trabalho, a maioria feminina que invade as Universidades, a conquista da independência material, social e psíquica, vem fazendo os homens começarem a perceber as dívidas que contraíram com o universo feminino.

Marina Silva e Dilma, encabeçando as manchetes e preferências nesta última eleição se tornaram simultaneamente ícones, exemplos e ameaças no conjunto de relações nesse "campus político", como definiria Pierre Bourdieu.

Mas é antiga essa relação de amor e ódio que atrai e repele o masculino e o feminino. Quem ler as peças de Eurípedes, de Sófocles ou de Ésquilo, talvez fique com a impressão de que as mulheres em Atenas – cantada tão lindamente por Chico – eram muito poderosas, pois apenas uma dessas peças não possui uma mulher como personagem principal.

Electra, Medeia, as Bacantes, Antígona, Helena, Fedra, é um desenrolar de personagens fortes, cativantes ou revoltantes. Essa impressão, contudo, já começaria a ser implodida quando formos informados que essas obras eram encenadas por homens e as audiências eram, provavelmente, masculinas.

Pior que isso, diz Jasão em Medeias:
Se se pudesse ter outra maneira os filhos,
Não mais seriam necessárias as mulheres,
E os homens estariam livres dessa praga!

O pior é que as personagens femininas também reproduzem esses estereótipos. Ismene diz a Antígona:
Põe na cabeça isso, mulheres
Somos, não podemos lutar com homens.
Há mais: somos dirigidas por mais fortes,
Temos que obedecer a estas leis e a leis ainda mais duras.

Por isso a vitória de Dilma – independentemente de sua coloração partidária – é uma inflexão em 500 anos de nossa História. Há 78 anos, pouco mais que meio século, as mulheres nem votavam no Brasil. Hoje já o governam.

Põe na cabeça isso, mulheres!
Somos tão fortes quanto os homens.
Nem mais e nem menos somos,
Pois o que completa não suplanta,
Mas também não falta.

Texto: Francisco Pucci (Sociólogo)




Durante muito tempo somente os homens entendiam e praticavam a arte de governar. Esse preconceito foi contrariado há séculos por Elisabeth I e Catarina, a Grande, entre tantas outras governantes. Foi justamente a Democracia que baniu as mulheres do Poder. Mas desde os tempos de Margaret Thatcher elas estão voltando. Jamais houve tantas governantes como hoje.


"500 anos esta noite"

De onde vem essa mulher
que bate à nossa porta 500 anos depois?
Reconheço esse rosto estampado
em pano e bandeiras e lhes digo:
vem da madrugada que acendemos
no coração da noite.

De onde vem essa mulher
que bate às portas do país dos patriarcas
em nome dos que estavam famintos
e agora têm pão e trabalho?
Reconheço esse rosto e lhes digo:
vem dos rios subterrâneos da esperança,
que fecundaram o trigo e fermentaram o pão.

De onde vem essa mulher
que apedrejam, mas não se detém,
protegida pelas mãos aflitas dos pobres
que invadiram os espaços de mando?
Reconheço esse rosto e lhes digo:
vem do lado esquerdo do peito.

Por minha boca de clamores e silêncios
ecoe a voz da geração insubmissa
para contar sob sol da praça
aos que nasceram e aos que nascerão
de onde vem essa mulher.

Que rosto tem, que sonhos traz?
Não me falte agora a palavra que retive
ou que iludiu a fúria dos carrascos
durante o tempo sombrio
que nos coube combater.

Filha do espanto e da indignação,
filha da liberdade e da coragem,
recortado o rosto e o riso como centelha:
metal e flor, madeira e memória.

No continente de esporas de prata
e rebenque,
o sonho dissolve a treva espessa,
recolhe os cambaus, a brutalidade, o pelourinho,
afasta a força que sufoca e silencia
séculos de alcova, estupro e tirania
e lança luz sobre o rosto dessa mulher
que bate às portas do nosso coração.

As mãos do metalúrgico,
as mãos da multidão inumerável
moldaram na doçura do barro
e no metal oculto dos sonhos
a vontade e a têmpera
para disputar o país.

Dilma se aparta da luz
que esculpiu seu rosto
ante os olhos da multidão
para disputar o país,
para governar o país.

(Pedro Tierra)
Brasília, 31 de outubro de 2010



                                                                                  Foto: Reuters

With a little help from my friends, hoje faço uma homenagem às mulheres poderosas e às mulheres no poder, na esperança que estejamos todos, caminhando para um mundo melhor: mais doce, mais justo e mais feliz.
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Izabel Liviski é Fotógrafa e Mestre em Sociologia pela UFPR. Pesquisadora de História da Arte, Sociologia da Imagem e Antropologia Visual.  Escreve quinzenalmente às 5as feiras na Revista ContemporArtes.
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Espaços industriais e Movimento Artístico Ocupações Urbanas





Para além dos trilhos, temos uma considerável parte decadente nos seus envoltos...Por meio de uma intervenção de um coletivo de ocupações artísticas, foi identificado à existência de uma indústria desativada, ocupando uma grande área inutilizada. Nesta postagem não vou prolongar sobre o conceito do coletivo Movimento Artístico Ocupações Urbanas (MAOU), pois ele ainda é incipiente, mas a equipe está articulada para melhor estruturar suas ações.


Em suma, para compreenderem, o movimento atua em espaços em ruínas como uma forma de denúncia, além da utilização destes locais para demonstrar o trabalho de cada agente. A primeira ação do MAOU foi iniciada na Fábrica ao lado da Estação férrea Prefeito Saladino, em Santo André – SP, uma ocupação realizada com a participação de, por volta, 400 artistas. Estamos elaborando um vídeo documentário com o intuito de registrar este movimento apesar de ainda estar no começo, conta com o apoio de vários especialistas, de diversas áreas do conhecimento.


Mais informações http://dialeticasensoriais.wordpress.com/ E matéria no site Intevenção: clique aqui.



Para aguçar vossa espectativa pelas produções do coletivo MAOU, abaixo posto dois teasers elaborado pelo cineasta Mateus Ávila:


Ocupação Máxima Teaser 001


Ocupação Máxima Teaser 002



Para ver algumas fotos podem ser encontradas:


"Ocupação Dialética"


Na minha ultima visita ao local, entrevistei o segurança do local e ele contou que os principais insumos produzidos nesta fábrica eram tubos e amônia. Relatou que a fábrica foi instalada na década de 1920 e, em 1970, foi desativada deste endereço devido a um acidente que explodiu os canos que passavam a amônia.



A foto acima Alguns funcionários foram intoxicados pelo contato com o insumo, disse que a amônia é tão forte que faz com que a água do solo tenha oxigenação, como um suspiro ela se evidência no chão do galpão, um resíduo industrial com uma entonação que chega a ofuscar as vistas pelo seu aspecto fluorescente e contextualizar ainda mais a paisagem decadente desta ruína urbana. O depoente explica também que a unidade foi transferida para Barueri, cidade localizada no interior paulista. E afirma que os proprietários têm medo de ser ocupado como moradia e assim ser formada uma favela no interior desta fábrica e ela não conta com o mínimo de condições apropriadas para tal, com isso foram contratados seguranças para tomar conta do local e impedir que esta ação seja consolidada. E pelo fato de não ser esta nossa pretensão não sofremos nenhum tipo de repressão, inclusive, temos uma relação de diálogos, realizadas por telefone e presencialmente, mediada principalmente pelo precursor do movimento, o artista Moises Patrício.


Uma das pretensões do MAOU é levar para as escolas o debate sobre as diversas técnicas e linguagens artísticas, que têm como intenção primordial de propagar e difundir as diversas formas de intervenções artísticas: desenhos, frases, publicação de livros, artigos, seminários, palestras, oficinas, documentário, entrevistas, coleta de depoimentos... Outro fator relevante é que muitos dos artistas não têm espaço para treinar, por em prática suas idéias e expressões, trocar experiências, além de ser um importante meio de divulgação dos trabalhos realizados.


Este movimento rendeu muitos frutos, vou citar dois Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), de grandes amigos.


O primeiro foi um ensaio de moda com roupas estilizadas pelo aluno Renan Serrano, graduando em negócios de moda na Faculdade Santa Marcelina, além das roupas o aluno colocou fogo nos acessórios, por isso precisava de um espaço desocupado sem perigo de causar acidentes e incomodar outrem com fumaças e odor. Sem contar que foram utilizados equipamentos profissionais para a realização, ficando sujeitos a roubo e afins ameaças, lá dentro da fábrica fizemos o trabalho sem medo de termos estes causos.


A segunda realização foi como locação para o grupo do aluno Étore Mantovanni, graduando em Rádio e TV na Universidade Metodista, tiveram a idéia de fazer uma filmagem em plano seqüência dos créditos do documentário que será apresentado também no TCC da equipe, foram desenvolvidas as letras e os rostos dos personagens colaboradores da produção em stencil art. O documentário trata de uma copa de futebol, pouco difundida: Homeless Wolrd Cup.


Mais informações sobre documentário: www.criolaproducoes.com.br
Mais informações também no sítio oficial do evento: http://www.homelessworldcup.org/



Soraia O. Costa é graduada em Ciênciais Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André (2009). Socióloga, pesquisadora e documentarista do projeto Neblina sobre Trilhos sobre a memória ferroviária de Paranapiacaba - apoio institucional Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA), Universidade Federal do ABC (UFABC) e Ministério de Cultura e Educação MEC/SEsu. Funcionária superintendente de operações e pesquisas econômicas do Intituto Brasileiro da Economia, Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (IBRE/FGV-SP). Participam dessa coluna o historiador Demócrito Mangueira Nitão Junior FSA/UFABC e a socióloga Marina Rosmaninho FSA/UFABC.
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Paradeiro: A Lenda do Homem-Lobo.


E se, você acordasse e todos os jornais do mundo publicassem na manchete principal a captura de um verdadeiro lobisomem? Isso abalaria suas convicções? Se hoje alguém te perguntar se você acredita em lobisomens, o que você responderia?

Bom, apesar da minha opinião não ser muito importante, convenhamos, se alguém me perguntar se eu acredito em lobisomens, eu responderia que não, eles costumam ser um tanto mentirosos. Agora, se me perguntarem se eles existem, eu responderia que sim, sem sombra de dúvidas! Talvez não no sentido ontológico, mas com certeza no sentido metafísico, no imaginário coletivo, na cognoscência humana. Eles existem no registro de culturas espalhadas pelo mundo todo. E explicações para isso a ciência têm de montão!




Pesquisei o título "lobisomem" em 31 culturas diferentes, sendo a primeira lenda provinda da mitologia grega que conta a história de Lycaon - termo que originou a palavra licantropia. Além dessas, temos diversas lendas como a lenda de Mobach, de Petter Stubbe, a Besta de Gevaudan na França e muitas outras espalhadas por todo o mundo. Pelo visto, é lobisomem que não acaba mais e se você acha que isso é coisa do passado, sinto lhe informar, ainda existem muitos relatos hoje de fatos estranhos atribuídos a lobisomens.


Para se ter uma idéia, existe hoje um movimento evangélico neopentecostal que acredita verdadeiramente que satanistas possam se transformar em lobos (e outras coisas). Não muito diferente da crença moderna européia, também muito utilizada pela igreja católica como fonte para assegurar o temor dos fiéis. Uma literatura dessa corrente muito interessante provém de um autodenominado "ex-satanista", codinome Daniel Mastral, na sequência Filhos do Fogo e Guerreiros da Luz. Mas para não dizer que isso é pura crendice popular, nessa semana, o Animal Planet e o History Channel apresentaram 2 documentários de caráter totalmente diferentes sobre o mesmo assunto.




O documentário "Homens-Lobos: Mito ou Realidade" do Animal Planet, construído na forma de filme, apresenta uma série de assassinatos cujo o principal suspeito seria um homem-lobo despreendido de seu bando. A narrativa é iniciada com um assassinato flagrado por uma câmera de estacionamento, onde o animal apresentava comportamento humano. A partir de então, a polícia inicia uma investigação para capturar o animal, ou ser humano por trás dos assassinatos. Eles levantam diversas hipóteses baseadas em doenças reais, como a Porfiria e a Hipertricose, mas finalizam a história com uma mutação do vírus da raiva.


Nessa mutação, ao invés do vírus atingir o cérebro, destruir os neurônios e transformar a pessoa em um perigoso maníaco, morrendo cerca de 5 dias após a manifestação da doença; o vírus conseguiria espalhar-se pelo corpo todo, e ao invés de matar a pessoa, seria capaz de fortificar o indivíduo portador dessa. Até incluem na trama um grupo bárbaro chamado Ulfhedinn, que possuíam o lobo como tótem. Os que eram capazes de assumir a forma de lobo eram chamados de Ufhednar por sua cultura. Na explicação do documentário, um fóssil encontrado na América do Norte, comprovaria que esse grupo esteve nas Américas e, nesse fóssil, teria sido encontrado vestígios dessa doença.



Pesquisei na internet, sobre alguma localização recente de fóssil bárbaro na América do Norte e não encontrei. Existem compravações de outros grupos bárbaros diferentes do citado no documentário. Mas o que mais me chamou a atenção no documentário foi a intencionalidade: porque, apesar de ser tratado como filme e ser apontado como documentário, ele não se remete nem à veracidade, nem ao gênero ficcional do relato, deixando no ar a fonte e o motivo de tal demonstração. Este estilo cinematográfico é uma modalidade atual que se iniciou com "Bruxa de Blair" e foi seguido, anos depois, por "Atividade Paranormal" e "Contato de 4º Grau". A diferença entre os dois primeiros, o 'Contato de 4º Grau" e o documentário é que, os primeiros foram anunciados como ficcionais pelos produtores tempos depois da filmagem. No entanto, o documentário do Animal Planet, assim como o "Contato de 4º Grau", não foi apontado pela mídia ou pelos produtores como algo ficcional. E aí, fica a dúvida: e se não fosse ficção e sim, uma simulação de algo que a ciência sabe e não quer falar?

Já o documentário do History Channel concluiu que as muitas mortes atribuídas a um possível lobisomem, a besta de Gevaudan, não passava de uma hiena africana de pêlos longos, treinada por um homem para matar. Essa hipótese já havia sido levantada no filme "Pacto com Lobos", muito bom por sinal! A questão é que os ataques da Besta de Gevaudan não se tratou de um caso isolado, como apontado pelo próprio documentário. Segundo o site Wikilíngua, houve casos de ataques parecidos, sempre com muitas vítimas até o ano de 1954. Porém, infelizmente ainda não tive acesso a registros históricos que comprovem a veracidade de tal informação. O fato é que, se realmente houveram outros tipos de manifestações dessa possível besta, a descoberta do History não responde muita coisa.


Muitos pesquisadores atribuem os relatos históricos de lobisomens à portadores de porfiria em estado crítico, hipertricose, ou ainda, licantropia. Como na época ainda não se conhecia a doença, a pessoa poderia ser julgada, como um lobisomem pela sociedade devido ao seu comportamento estranho. Mas para nós, que gostamos de tudo muito explicadinho, essa teoria não cola muito não! A idéia de que de repente, os relatos fossem atribuídos a animais fora de seu habitat, um híbrido, ou ainda, a uma raridade pré-histórica, também são hipóteses. Mas não só de hipóteses viverá a história, certo?


Apenas para ilustrar um ponto de vista cético, recentemente, policiais texanos acreditaram ter filmado o famoso chupa-cabra. Na mesma região, foi encontrado um cadáver parecido com o animal filmado, mas a principal hipótese levantada pelos zoologistas da região é que o animal encontrado seja uma espécie de coiote. Pode até ser! Porém, sabemos que os avanços da ciência, conseguem criar muita coisa em laboratório e isso deixa esse tipo de informações carregadas de dúvidas. A ciência gosta de brincar de Deus e o que impede os cientistas de criarem esses animais em laboratórios só para dar veracidade ao mito? Nada impede! Mas isso também não anula todos os séculos de relatos históricos sobre a existência de um animal meio humano e meio lobo, independente de se tratar de um arquétipo coletivo ou não.




Agora, se amanhã, ou depois, as manchetes de jornais apontarem a descoberta de um lobisomem será que poderíamos julgar o fato relevante? Os mistérios da humanidade continuariam a me incomodar. Minha conclusão é que a natureza esconde verdades, que até a verdade desconfia e daí a prova da impotência humana diante de sua própria História.

Então, finalizo meu texto dizendo muita coisa e não dizendo nada. De qualquer forma, desejo uma boa caçada para você!

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Yone Ramos é uma curiosa nata, vive fuçando onde não deve e é por isso que o título de historiadora - mal - lhe cabe. Colunista quinzenal da ContemporArtes, vive fazendo Arte por aí! No bom sentido!

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DOIS APAIXONADOS POR UMA


Década de 80. Extinta Logus Propaganda, Campinas. Foi ali, onde eu trabalhava como redator, que nossos caminhos se cruzaram, a amizade se fez forte, duradoura, e a troca de experiências, vivências, o intercâmbio, desde aqueles tempos idos, continuam até hoje. Quase que diariamente, contribuindo para o aprimoramento e inclusive incentivando o aumento de produtividade dos nossos textos literários.

Devanir Luiz Kauffman Ferreira, redator e poeta de mão cheia, vindo de Ribeirão Pires, com passagem por importantes agências de São Paulo, chegava trazendo na bagagem novos conceitos e muitos prêmios publicitários, como também inúmeros livros de poesia embaixo do braço. Entre eles, AMOROSO, dedicado a uma de suas tantas musas, e BONITO, já mostravam seu estilo marcante, seu grande poder de concisão, ao qual me rendi, aprendi e adotei por tamanho encantamento. Inspire-se nesses belos exemplos e na profundidade desses versos:

1.
Vida zerada
Loves fora
Nada

2.
Tenho sonhado poemas em branco

3.
Beijar tuas espinhas
Com todo o carinho

Com todo o carinho
Beijar teus espinhos

Era sabido por todos que, entre suas fontes de inspiração e desejo, existia uma em especial: Uma Thurman, motivo pelo qual sempre abastecia minha caixa de mensagens com fotos cotidianas da atriz americana que tanto adorava, criando também em mim certa empatia e, por que não dizer, admiração por essa bela e enigmática mulher. Porém, certo dia, nessa história de trocas de textos via internet, chegou do Deva um poema dedicado a Uma. O texto era tão bom, tão instigante que, com uma pontinha de inveja (no bom sentido) por não tê-lo criado, imediatamente fiz o meu poema-resposta em homenagem a Uma e a todas as mulheres, mandando o e-mail imediatamente de volta. Veja só o resultado dessa brincadeira:



É isso aí: além de apresentar um pouco do trabalho do Deva, aproveitei o Uni.Verso de hoje para mostrar o quanto é importante o intercâmbio para a aproximação das pessoas, o engrandecimento dos escritores e da própria literatura. Pense nisso! Até a próxima. E câmbio final.


Geraldo Trombin é publicitário e membro do Espaço Literário Nelly Rocha Galassi, de Americana - SP (desde 2004), lançou em 1981 o seu livro “Transparecer a Escuridão”, produção independente de poesias e crônicas. Com mais de 160 classificações conquistadas em inúmeros concursos realizados em várias partes do país, tem trabalhos editados em mais de 60 publicações.
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To(c)que


por Diego Pereira Rezende.

As minúcias cotidianas tinham ao afeto de Cecília um estorvo incorrigível. Durante certa madrugada, ela despertou com o barulho estridente do miar raivoso de um felino de cores pálidas sobre o muro próximo à janela, não se abalou ao primeiro momento e se virou na cama, procurando uma posição confortadora aos ruídos. Tal procura percorreu os vinte próximos minutos, em vão. Absorvera os estalidos cânticos em seu pesar.

Nudez Azul
(Pablo Picasso)
Havia de ser feito algo, no entanto, Cecília sabia que se levantar seria um caminho de mão única, sem nuances e voltas. O relógio ao lado da cama marcava quatro horas e cinco em vermelho sangue. Levantou-se.

Acendeu e apagou a luz nove vezes, com o cuidado pormenor para não se perder na conta e na força. Ergueu lentamente o corpo com a mão esquerda, tirou o pé direito sob o lençol, em seguida o esquerdo. Que peso extremo tinha os seus pés, pois eram sempre o ponto de partida de um dia novo, pés tão miúdos aqueles, de dedos magros, veias atônitas e esmaltes corroídos. Abrir a janela significaria uma fragmentação espúria da rotina que lhe prezava tanto. Orquestrados pelo pé direito, seus passos partiram do quarto, deixando para trás a janela e a cortina intactas, evitou-se até encará-las.

Mulher em frente ao espelho
(Pablo Picasso)
As portas eram obstáculos nítidos, encostar significaria sangrar como se em arame farpado fosse. Os passos eram ritmados, como uma dança metódica, como um baile de primavera. Não. Seriam, quem sabe, se não tocasse ao fundo uma valsa latina tão triste, tão triste. Eram passos contados até o banheiro, o passo último, sempre, era o esquerdo. Nesse momento, havia uma pausa, um silêncio, um gole seco, quase um passageiro e intermitente alívio.

Havia uma lástima insuportável em qualquer quebra do corriqueiro, por isso, Cecília sempre se via tão intolerante passando manteiga no pão caseiro preparado pelo pai ou ao colocar grãos contados aos olhos no café amargo, forte, quente, indispensavelmente essencial para a inspiração de se tomar a refeição da manhã, simbolismo máximo do nascer de um dia outro como os outros.

The Broken Column
(Frida Kahlo)
Era necessária uma acuidade ímpar aos contatos, às proximidades, aos toques imprevistos. Um destes já era o bastante para uma tragédia, para o recomeço de um interminável ritual invisível.

Percorrer à deriva paisagens urbanas era de uma inquietude incompreensível aos olhares comuns. Pulava losangos, escolhia cores, pedras, desenhos, Cecília tinha que improvisar e, concomitantemente, convencer a si mesma a providência de se fazer sentido no que se fazia. Um toque estranho ao corpo lhe despiria a alma, atribularia a lucidez, emergiria o suicídio.

The Key (Jackson Pollock)
Cecília está diante do cenário, laranja e azul, que sua madrasta construíra no banheiro. Ao passar pela porta com o pé direito já se podia enxergar o encontrar dos olhos, reais e ilusórios, no espelho manchado de tempo. Destampou o sanitário com a mão direita, calmamente. Despiu-se. Sentou-se. Recortou nove partes da folha dupla do papel higiênico. Usou. Descartou. Tampou. Apertou. Levantou-se. Vestiu-se.

Abriu a torneira com a mão direita, enxaguou-se levemente, a mão direita por cima e a esquerda por baixo, em formato de concha. Havia de se repetir nove vezes o enxágue. Nove vezes. Balançou as mãos em ritmos pares e as passou na toalha que, por qualquer despeito de um frívolo toque, explodiria.


Contribuição do leitor Diego Pereira Rezende, originário de Viçosa. Atualmente, embriaga-se de cinema, literatura e pesquisas acadêmicas na área de “Educomunicação e Construção Identitária” (BIC) no curso de Comunicação Social na UFJF.
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