Nova Moscou








A definição oficial contendo estatutos da definição clássica do modelo artístico e cultural criado, a partir das influências dos pensadores e políticos soviéticos que queriam homogeneizar a produção cultural na URSS, só aconteceu em 1934. Isto se deu no Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos, cujo estatuto definiu a fórmula doutrinária que deveria ser seguida. A parte principal deste documento pode ser lida abaixo.
O realismo socialista é o método básico de literatura e da crítica soviética. Isto demanda do artista uma representação verdadeira, historicamente concreta da realidade, no seu desenvolvimento revolucionário. Além disso, a veracidade e concretude histórica da representação artística da realidade devem vincular-se com a tarefa de transformação ideológica e a educação do s trabalhadores no espírito do socialismo (TERTZ,1960 apud KENEZ, 2003, p.143).

Na prática, estas decisões do Congresso de Escritores Soviéticos, homologaram uma situação que já estava ocorrendo há muito tempo. Este congresso só fez oficializar uma doutrina de gestão e representação cultural que já estava sendo implementada, desde o final dos anos 1920’s.
Não demorou muito tempo para que a homologação oficial da doutrina do realismo socialista impactasse, diretamente, na história da organização do cinema soviético.
Clark (2003), ao se referir ao realismo socialista, questionou a ampla aplicabilidade deste conceito. Para esta autora só alguns romances soviéticos con seguiram expressar, em sua totalidade, os códigos verbais, e de signos, característicos da cultura stalinista. Esta autora coloca que a chave do conceito está nos heróis positivos, encarnados neste tipo de literatura e que incorporaram, nas suas histórias, valores públicos, relacionados ao progresso da nação em direção ao comunismo. Eles também legitimavam o status quo como situação social benéfica para o caminho correto da trilha marxista-leninista. Ainda de acordo com Clark (2003, p. 14), estes heróis tinham como função principal mediar as relações entre as províncias e Moscou: “Sua principal função era fazer a mediação entre as províncias (periferias) e Moscou.”
Geralmente, estes romances da literatura soviética eram ambientados na periferia das cidades, ou nas áreas rurais. Os motivos que levaram às representações periféricas dos heróis positivos podem ser compreendidos melhor, quando consideramos que houve, na URSS, a presença de dois sistemas binários de referências culturais.
Quando utilizamos o vocábulo binário estamos nos referindo, à coexistência de dois sistemas culturais: um que representava os valores do passado imperial russo, e outro que estava sendo construído pelos bolcheviques. Nesta conflituosa perspectiva, relativa ao modelo cultural que os comunistas almejavam hegemonizar na URSS, os heróis positivos, principal característica do realismo socialista, tinham aspectos que os identificavam com os espaços sociais limítrofes aos grandes centros urbanos, pois historicamente a periferia sempre foi o local onde estavam as massas. Já o espaço urbano foi identificado com os grandes líderes do partido, portanto foi representado como um lugar especial, destinado às grandes personalidades. O que pode ser interpretado como uma forma inconsciente de absorção de valores culturais oriundos do czarismo russo, pois na Rússia dos czares, as cidades também tinham esta aura de lugar reservado às pessoas importantes.
Este fenômeno narrativo propiciou segundo Clark (2003), a antropomorfização de determinados símbolos espaciais, dentre eles, as novas construções e monumen tos que os comunistas estavam planejando erguer, durante a vigência da URSS.
Em outros campos artísticos, onde a narrativa não existe, ou é um componente pequeno, não havia possibilidade dos códigos serem expressos da forma como foram na literatura soviética da década de 30. Porém, ela faz uma observação muito sutil, mas extremamente válida para um entendimento da complexidade em que se manifestou o realismo socialista. Clark (2003, p. 5) advoga que, de forma diferente da literatura, a arquitetura desempenhou um elemento singular da propagação dos valores relacionados à cultura staliniana, principalmente no que se refere ao remodelamento do espaço. “A purificação ou re-purificação do espaço provou ser uma obsessiva preocupação com a cultura stalinista.”
Segundo esta autora, a arquitetura foi a expressão artística que melhor contribuiu para sacralizar, no espaço, os valores da cultura stalinista. Em 1931, mesmo ano em que Gorki retornou à Rússia, diversos líderes do partido discursaram sobre a necessidade de o governo soviético reconstruir o país, através do remodelamento estético dos conjuntos arquitetônicos, existentes na URSS, e que remetiam ao passado pré-revolucionário, caracterizado pelos bolcheviques, como uma época de atraso industrial, referente à ruralização da Rússia. Para alguns líderes do Partido, o período socialista deveria ser eternizado, através de grandes obras que expressassem os benefícios que o sistema social soviético trouxe para os cidadãos. Levando em consideração que era necessário eternizar ícones que ajudassem a consolidar no imaginário social, elementos voltados para a construção de uma identidade nacional soviética, o uso da arquitetura como mecanismo de re-significação das relações entre o sujeito e o espaço foi bem articulado, do ponto de vista estratégico.
Termos da arquitetura como: edificação, fundação, recons trução se tornaram usuais na sociedade. Isto foi tão evidente que também em 1931, o plenário do Partido decidiu e anunciou que a maioria das cidades soviéticas deveriam ser reconstruídas, segundo valores estéticos, oriundos do Marxismo-Leninismo. Para verificar a eficácia destas decisões, relacionadas à reconstrução e reordenação das cidades, diversos supervisores foram encarregados de verificar o sucesso das obras.
Em seguida, no plenário do Partido, em junho de 1931, um plano para reconstrução de muitas das cidades soviéticas foi anunciado. Posteriormente, ao longo das décadas, os planos de construção de cidades e edifícios foram supervisionados, de perto, por líderes do Partido, especialmente por um dos líderes do Partido em Moscou, Lazar Kaganóvich que, em 1933, foi apontado como chefe do corpo de supervisores do Arkhplan . Seja como causa, ou como efeito, a retórica do Partido, em reconstruir as cidades soviéticas, serviu para elevar as transformações morais e políticas de toda a sociedade em direção ao comunismo. (CLARK, 2003, p. 4).
Estas ambições, referentes à sacralização arquitetônica dos pr essupostos de organização social do marxismo-leninismo, presentes nos modelos artísticos e de comportamento, oriundos dos paradigmas do realismo socialista foram expressas, explicitamente, através de alguns filmes.
Nestes filmes, confirmamos a opinião de Fitzpatrick (1999) de que boa parte da reconstrução espacial foi enfocada na construção de palácios: Palácios dos Esportes, Palácio do Trabalho, Palácio da Cultura: o que deve ser encarado como uma contradição, com a renegação do passado, objetivada por estas construções, pois os palácios sempre foram identificados com as classes dominantes, em especial, com a nobreza.
Um destes filmes que expressa estas mudanças arquitetônicas, vislumbradas pelos adeptos do realismo socialista durante 1930’s, se chama “Nova Moscou” (1938) e foi dirigido por Alexander Medviêdkin. Mesmo sendo um filme com claro teor propagandístico das transformações arquitetônicas, ele não foi autorizado pela censura a ser exi bido nos cinemas. Porém, ao contrário de muitos filmes soviéticos que foram engavetados durante década os anos 1930, é possível analisá-lo na atualidade, pois uma de suas cópias foi preservada.
Neste filme estão contidos alguns dos projetos de reconstrução de Moscou, baseados nas diretrizes de reformulação das cidades soviéticas. As tomadas mais interessantes se passam em um cinema. Neste local, há uma tribuna na frente da tela de exibição, cuja moldura contém imagens de Stalin vislumbrando Moscou, reconstruída. No púlpito, uma personagem responsável pela apresentação da película dirige-se à tribuna e desculpa-se por um erro do projetor que está transmitindo a imagem de trás para frente. Ao perceber este erro, ela se espanta e comenta: “Quem está fazendo isso? Moscou está voltan do no tempo”. O seu espanto está no fato de que o erro do projetor criou imagens onde as novas intervenções arquitetônicas dos bolcheviques são implodidas e substituídas por símbolos espaciais, oriundos da arquitetura czarista e da igreja ortodoxa.
Após consertar o erro de projeção, inicia-se o “filme” dentro do filme, cujas primeiras cenas foram elaboradas a partir de técnicas de montagem, que justapuseram imagens artificiais e reais de locais – igrejas ortodoxas, ruas estreitas sem calçamento, favelas – com os projetos de remodelamento urbano, almejados pelos líd eres do partido. Cadencialmente, os símbolos da Rússia pré-revolucionaria foram apresentados e substituídos por construções modernistas. Durante o filme, fica claro que a intenção do roteiro, e da edição, foi comparar os modelos arquitetônicos do regime czarista, demonstrado-os como reflexo do atraso medieval, com os planos de urbanização do Partido, identificados no filme, como o ideal de progresso e prosperidade.
A partir de um determinado momento do filme, as imagens de “Nova Moscou” foram planejadas para demonstrar o efeito progressista que e stas construções teriam na paisagem de Moscou, ou seja, estas tomadas visavam demonstrar como a capital soviética iria se transformar com as intervenções arquitetônicas edificadas durante o regime soviético que, em tese, iriam melhorar a qualidade de vida da população. Da mesma forma que a parte anterior do filme caricaturou o passado czarista e atrasado da Rússia, o futuro também foi construído a partir da justaposição de imagens reais e artificiais da velha Moscou com maquetes que simulava m a paisagem após as intervenções.
Nesta película, é possível visualizar alguns ícones destas mudanças espaciais e arquitetônicas propostas pelos bolcheviques: construção do Palácio dos Soviets , Praça Puchkin, Praça da Revolução, Avenida da Academia de Ciências. Vários destes projetos nunca saíram do papel. Mesmo alguns que chegaram a ser executados não foram concluídos, como o Palácio dos Soviets, cujas obras começaram em 1937, mas devido à invasão alemã, e problemas com as fundações, sua construção teve que ser interrompida. Após a guerra, os soviéticos não conseguiram terminar o projeto e transformaram a planta original numa piscina recreativa. Além destes problemas técnicos, houve uma série de rumores, entre a população soviética, de que o “trabalho do diabo tinha sido devidamente punido” (FITZPATRICK, 1999, p. 68), pois o local escolhido para a construção do palácio era o mesmo da Catedral do Cristo Salvador, demolida pelos bolcheviques no começo dos anos 1930’s.
Segundo Fitzpatrick (1999), atrás do novo mundo pretendido pelos ideólogos do Partido, estava o velho mundo. Medviêdkin sabia disso ao filmar “Nova Moscou” (1938). O filme incomodou as autoridades soviéticas por dizer aquilo que não poderia ser dito, mesmo que de forma pejorativa e anedótica. O passado imperial russo ainda existia. Para a burocracia partidária, a maximização das realizações soviéticas não deveria ser abordada em uma comédia, gênero no qual “Nova Moscou” se enquadra.

As figuras, a seguir, foram frames retirados de “Nova Moscou”. Elas remetem ao passado pré-revolucionário, e ao futuro pre tendido pelos soviéticos.




























Diogo Carvalho é Historiador pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente desenvolve mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA), onde realiza pesquisas sobre o cinema soviético. Membro da Oficina de Cinema-História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFBA). Trabalha com os seguintes temas: cinema, culturas, História, cultura digital, política humanidades e literatura beatnik. diogocarvalho_71@hotmail.com


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Poesia e política: "Gota d'água" - anotações de uma montagem


Primeiras conversas sobre poesia e política em "Gota d'água" - anotações de uma montagem
Em primeiro lugar caberia afirmar que, para nós, um mesmo texto dramático encenado em momentos históricos diferentes se traduz em diferentes encenações, que – evidentemente – acabam por não dar a ler o mesmo texto. Entender diferente disso exigiria justamente aquilo com o que a encenação não tem compromisso, a fidelidade seja ao texto, seja a uma tradição de representação.
Nossa proposta é entender Gota d’água passando além dos liames comparativos já tão discutidos a partir das suas relações intertextuais com a tragédia Medéia, de Eurípides, E para isso partimos da idéia de teatro intercultural trabalhado por Patrice Pavis no seu livro O teatro no cruzamento de culturas (2008).
Uma encenação mediante uma perspectiva intercultural é vista como aquela que não tem por fim a fidelidade de uma obra adaptante à adaptada, mas que sugere um dialogismo em prol do surgimento de algo novo, estética e culturalmente, como propõe Pavis.

Por isso vamos operar filtros e reconstruções. Nossos tempo, lugar, sociedade, cultura e contexto são outros. A contemporaneidade, como pensou Linda Hutcheon (2006) altera a maneira como a história é recebida, principalmente no que tange à sua (re)interpretação. Assim, ao abandonar o “nacional-popular” e focar na ineficácia e conseqüente impossibilidade de uma “solidez” nas instâncias sociais, o que Zygmunt Bauman chamou de modernidade líquida queremos perguntar qual seria, então, o lugar do amor nessa configuração social? Haveria lugar, na dinâmica de atualização do desejo, de mudanças constantes e ininterruptas, de fluidez e afetos em trânsito intenso, para o discurso de amor eterno, tal como o de Joana por Jasão?
Se o texto Gota d’água sustenta a ideia de que seja extremamente difícil imaginar outros modos de auto-realização pessoal numa cultura em que o amor se tornou sinônimo de quase tudo que entendemos por felicidade, nossa encenação plasma outras soluções formais que se erigem de um enredo igualmente ressignificado, adequado ao público-receptor, cuja visão de mundo imporia outras regras de verossimilhança. Aquilo que se passa ali, no centro da cena, poderia se passar com qualquer um da platéia. O que nos interessa é que naquele tempo de encenação, a vida por inteiro, naquilo que ela tem de mais essencial, se manifeste através da lapidação do mito: resultado da purgação do terror e da piedade suscitados pela encenação.
Mesmo compreendendo a grande diferença entre Medéia e Joana, as protagonistas das duas peças se assemelham em um ponto crucial: são mulheres. Ao se envolverem na paixão, a idéia que possuíam delas mesmas transformou-se na idéia do relacionamento. Todas as suas forças foram canalizadas nas conquistas dos seus amados, esperando, em troca, receber deles o carinho, a atenção e, principalmente, a fidelidade. O “eu”, a individualidade, converteu-se no “eu e ele”. Nesse ponto de vista, existe o significado dramático, quando as personagens perdem-se durante a trama e, nesse ato, tragicamente suicida, resta numa estratégia da encenação, uma reflexão sobre os relacionamentos contemporâneos, sobre a construção cultural do amor. Não se trata de aprender a não agir errado fazendo isto ou aquilo especificamente, mas de aprender o que a cada vez significa agir e isso de modo universal.

Para tanto, não há filiação estética imutável e inalterável possível de descrever o que pretendemos. Nossa proposta é a de realizar um processo de bricolage. Nosso estilo é o mestiço, feito de empréstimos sucessivos, da multiplicidade nascida do encontro, uma tal “predação incorporante”.
Assim, embora enxerguemos que, nesse caso, o texto Gota d’água seja o núcleo orgânico do espetáculo trágico, se aproximando, dessa maneira, daqueles que acreditaram que o palco seria apenas o local de “exalação do texto”, também queremos fazer coro com Grotowski em busca do teatro-acontecimento, aquele capaz de, “fazer o público chorar”, colocando-o mesmo numa situação de risco, de insegurança, dentro do jogo brechtiano – que é o palco, carregado de teatralidade, de diversificação vertical dos planos, de simultaneidade de ações e do poder sugestivo da iluminação simbolista, bem ao modo de Appia.

Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.
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ESTILHAÇOS DA VIDA COTIDIANA


Hoje nossa coluna publica poemas e fotos numa interação entre as duas linguagens, como se eu estivesse conversando com a autora dos versos, Lucia Helena. É engraçado como nos conhecemos, ou melhor, como travamos conhecimento através de um romance que Lucia publicou sobre uma viagem a Cuba. Na época eu havia recém estado em Havana e estava apaixonada por aquela terra e pelo povo. Lia tudo que se publicasse sobre o país, foi assim que cheguei até o livro de Lucia Helena. Liguei para a editora e eles me enviaram o e-mail da autora que residia em São Paulo, e assim começamos um bate-papo virtual. Na sequência ela me enviou outro livro de sua autoria, Desnudez.

Algum tempo depois, surgiu uma oportunidade de retornar a Cuba a convite do ministério da agricultura daquele país, dessa vez para visitar as vinte provincias fazendo um trabalho de texto e fotos, o que daria a chance de nos conhecermos pessoalmente, pois ela seria a autora dos textos. Essa viagem, infelizmente, não se concretizou naquela oportunidade, mas continuamos aguardando o posicionamento do "nosso homem em Havana", código que inventamos para falar sobre o andamento do projeto que dependia de várias instâncias.
Com vocês, Lucinha, como é conhecida nossa poetisa:


Entre os inúmeros acasos e casos
que me ocorrem
há raros que me enaltecem
fazem transbordar,
fragmentando, isolando,
ainda que por minutos,
os estilhaços da vida cotidiana;
sãos os momentos, em que abraço
e deixo-me ser abraçada,
em uma profusão doce
de tatos e almas enamoradas,
suprindo e burlando
as mazelas armazenadas.


                                                                             "Che"


Se não escrevo,
Parece que pereço,
Já não sei se sou,
Ou apenas adormeço,
Embalada em sonhos
Dessfigurados de contexto,
Sem que eu tenha
Ao menos o pretexto
De desvendá-los ou
Arrancá-los do cesto.



                                                                         "Anagrama"

             
Um operário
Trabalhando na fundição
Derrama lágrimas em minha alma.
Um cérebro em exposição
Na sala de Parasitologia,
Dá-me a convicção
Que sou apenas alma.


                                                                      "Sem título1"

                             
Que importância tem:
A seca no sertão,
A escola sem ação,
A liberdade no porão,
A lesão no coração,
Se não são minhas,
Estão na sala das fantasias?

Que importância tem:
Serão golpes?
Armadilhas?
Inocentes picuínhas.


"Corpo Hurbano"


Somos todos mutantes
Com os pés algemados,
Nossos sonhs são delírios
Nossos medos ancorados.
Mutantes covardes,
Com desejos afogados
Em um bom senso desvairado...

                                              
                  
                                                                      "Sem título 2"


Eis-me, aqui:
Um ser pensante.
Roubaram-me o riso.
A consciência
Abre a janela
Para paisagens
Nem sempre cintilantes.


                                   

                                                                      "Natureza e Cultura"


Às vezes
A dor implode,
Acomoda-se mansamente
Como se sentasse
Ao camarote,
A dor
que não é só minha
A dor
da espécie,
da vizinha...
Os olhos delatam,
A ausência da euforia,
Ser sensível
Ser instável
Em busca da utopia.


                                                                       "Abandono"


Gosto de deitar-me à relva,
Ouvir música clássica,
Atirar os pensamentos ao ar,
O céu a contemplar.
Que cena bucólica,
Pena que folclórica!
Estou em pé,
Ladeada pelas
Prateleiras do supermercado.


                                                                               "Red"



                                                                           
Fotos: Izabel Liviski
Poemas: "Desnudez" de Lucia Helena de Andrade Gomes




Izabel Liviski é Fotógrafa e Mestre em Sociologia pela UFPR. Pesquisadora de História da Arte e Sociologia da Arte e da Imagem. Escreve quinzenalmente às 5as feiras na Revista ContemporArtes.

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Tragédia na Noruega: perigo da extrema direita?


Mais uma vez recorro a esse canal para refletir sobre os chamados distúrbios da contemporaneidade frente ao novo acontecimento que vem sendo amplamente divulgado pela mídia nacional e internacional: a tragédia da Noruega, que aconteceu na última sexta-feria 22, na Ilha de Utoya, próxima Oslo. Atentados a bomba e tiroteio fizeram 93 vítimas. Os atentados são atribuídos a força da extrema direita e alguns artigos já fazem a relação entre os acontecimentos e a oposição a União Européia, a globalização e a ideologia multiculturalista. O suspeito Anders Behring Breivik se descreve como um "nacionalista", mas já há suspeitas que ele se enquadre no movimento do fundamentalismo cristão e portanto, tenha ligação com o chamado "terrorismo de direita".

Ainda há muito a ser investigado, mas a meu ver, tal acontecimento realmente tem ligação com esse estado de contemporaneidade que produz alguns tipos de indivíduos que tem comportamentos patológicos. No entanto, tudo isso não apaga - em termos individuais - a patalogia/ distúrbio de toda a sociedade ocidental que ainda não aprendeu de fato a lidar com as mudanças bruscas que se fazem a partir das rupturas de paradigmas da compreensão e concepção de mundo: o tempo e o espaço. O primeiro se acelera e fragmenta vertiginosamente enquanto o segundo torna-se geograficamente diferente com os novos espaços virtuais e encurtamento de distâncias. Não sou pessimista com as novas tecnologias, no entanto, as mudanças que elas proporcionam devem ser refletidas no âmbito das sociedades com toda a seriedade. A frequencia que estamos assistindo tais tragédias está sendo muito intensa. Algo deve  ser feito e teremos, obrigatoriamente, como passo inicial parar e refletir.
Nesse caso em específico, até onde vão as investigações o suspeito norueuguês Anders agiu sozinho. Sozinho - mas potencializado pela tecnologia. Ou seja, realmente o potencial destrutivo de novas tecnologias deve ser pensado.  Se unirmos esse potencial com o grau de violência, insatisfação e lutas das minorias temos um barril de pólvora. Foi-se o tempo que a chave da destruição estava nas mãos de estados (Guerra Fria) e todos ficavam apreensivos com o armamento nuclear e possibilidade de uma terceira grande guerra. Hoje tal potencial pode estar na mão do mais reles mortal e, de uma hora para outra, abreviar a vida de milhares de seres humanos.

Estava aqui a ler o depoimento do primeiro ministro norueguês Jens Stoltenberg que classificou a tragédia como a pior desde a segunda guerra. Como estudiosa do fenômeno da Segunda Guerra Mundial, não gosto de comparar um acontecimento beligerante que envolveu tantos países e teve o saldo de 45 milhões de mortos com a tragédia da Noruega. Diferentes tempos, razões, estímulos. O barril de pólvora - antes o expurgado nacionalismo - é outro. Acredito que hoje a pluralidade de pensamento que a democracia propõe aliada com as forças hegemônicas econômicas tem resistência em movimentos minoritários - alguns com perfil político extremamente agressivo como os grupos da extrema-direita. Mas, a probabilidade de tais grupos  chegarem a um governo de estado é mínimo. O que podemos contar é com isso que nossos olhos estão assistindo estarrecidos: ataques isolados como esse da Noruega. Para se defender deles - pensando nos estudos sobre terrorismo e sua fenomenologia - é algo extremamente complexo, pela multiplicidade de alvos e pulverização de espaços.
No entanto, é algo que devemos começar a fazer.

No artigo do Estadão, citando o jornal norueguês Aftenposten, fica evidente a fraqueza numérica e organizacional do "inimigo" da direita, embora haja a menção do perigo de uma articulação internacional, o que para mim também deve ser mais um elemento da análise (também facilitado pela globalização).

"O medo é aumentado pela mistura potencialmente explosiva de recessão econômica, aumento do racismo e um sentimento anti-islâmico ainda mais forte.
A polícia norueguesa notou um leve aumento da atividade de grupos extremistas de direita no ano passado e previu que ela continuaria a crescer este ano.
Mas sugeriu também que o movimento seria fraco, sem um líder e tinha pouco potencial de crescimento.
Embora membros do movimento de extrema direita norueguês tenham cometido ataques no passado, eles são historicamente uma comunidade pequena, segundo grupos que monitoram a atuação de neonazistas.
O escritor sueco falecido Stieg Larsson era um destes especialistas. Na década de 1990 ele criou a publicação anti-racista Expo, após o aumento da violência causada por tais grupos.
Entrevistado para um documentário que eu fazia à época, ele me disse que a Suécia era o maior produtor da chamada música White Power e outros instrumentos de propaganda racial, com um movimento neonazista crescente e violento.
Por outro lado, os neonazistas noruegueses eram desorganizados e caóticos, disse ele, citando o exemplo de encontros organizados pela extrema direita sueca, que contaram com uma pequena presença de visitantes noruegueses".



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Amanhã, na UFABC - Campus Sigma, às 16h, acontece o 8o encontro do Café com PP com a discussão do tema Inovação. A entrada é gratuita e será conferido certificado. Mais detalhes abaixo.











Ana Maria Dietrich é editora-chefe da Contemporâneos-Revista de Artes e Humanidades e coordenadora junto a Rodrigo Machado da Contemporartes-Revista de Difusão Cultural. Profa. Dra. Adjunta da UFABC.
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Balões Coloridos


Um jovem casal teve seu primeiro filho – muito doente, com reduzidas chances de sobreviver. Os pais receberam a notícia logo após o nascimento. Poucos meses, talvez semanas ou dias apenas, teriam a oportunidade de conviver com o pequeno Gabriel, que foi esperado com tanto amor.

Sabendo de seus dias contados, os dois pediram licença do trabalho e dividiram as vinte e quatro horas do dia de forma que ambos ficassem com o bebê, e eles – apenas eles – cuidassem do frágil recém-nascido. Com muita dificuldade para mamar, o pequeno precisava ser alimentado a cada hora do dia e da noite, com apenas alguns poucos mililitros do leite materno que a mãe produzia e, cuidadosamente, retirava e armazenava, num processo doloroso e demorado, pois ele não tinha forças nem para mamar suas gotas de vida...

Em nenhum momento os pais reclamaram de cansaço. Em nenhum momento brigaram sobre quem teria que trocar a próxima fralda ou dar a próxima mamadeira. Nem discutiram quem se levantaria no meio da noite. Muitas mães sentiram-se péssimas, por reclamarem que o filho, saudável, já queria mamar de novo, ou porque a criança derrubou a chupeta no chão... Fez-me lembrar de todos os momentos em que me sinto irritada com os tantos afazeres que a maternidade nos transfere, os familiares exigem e os amigos esperam. Nós valorizamos o que não merece, como um carro quebrado ou o desejo por um novo computador, e nos esquecemos de agradecer o que realmente é uma dádiva. Reclamamos das nossas tarefas diárias com os pequenos como se fossem fardos e nos esquecemos daqueles que não tem um teto, comida na geladeira ou roupas para aquecer os filhos no inverno impiedoso.

A história do jovem casal também me mostrou que tudo na vida é passageiro e rapidamente desaparece se nós não atentarmos a cada segundo e não vivê-los intensamente. E que, no final da vida, não adiantará mais ter aprendido essa importante lição, pois o tempo passado é tempo vivido, ou tempo perdido. Não existe meio-termo. Não se vive mais ou menos. Não se arrepende mais ou menos. Ou estamos presentes, inteiros, naquele momento, ou nunca mais poderemos alcançá-lo.

No dia do velório do anjo que repousava no pequeno caixão branco, os pais não estavam desolados. Estavam tristes, mas tranquilos. Estavam conscientes de que haviam feito o melhor que lhes era possível. Haviam amado cada segundo, cada suspiro, cada lágrima e cada sorriso daquele frágil ser. Cada dia de vida foi uma vitória, resultado de total dedicação. E soltaram 99 balões coloridos, um para cada dia de vida do bebezinho, com quem tiveram o privilégio de conviver naqueles poucos meses. Todos os presentes olharam para o céu, refletindo sobre o quanto a vida é frágil e o nosso destino pode mudar num piscar de olhos.

 E – como o passado – os balões ficaram inacessíveis, desaparecendo no céu azul, levando a alma do pequenino Gabriel para além das nuvens. Lindos, se foram e nunca mais foram vistos. Restou apenas a lembrança de um misterioso céu, imprevisível como só a vida pode ser, e de balões que representavam cada dia vivido no amor incondicional.



Simone Alves Pedersen nasceu em São Caetano do Sul e hoje mora em Vinhedo, SP. Formada em Direito, participa há três anos de concursos literários, tendo conquistado inúmeros prêmios no Brasil e no exterior. Tem textos publicados em dezenas de antologias de contos, crônicas e poesias. Escreve para jornal, revista e diversos blogs literários. Escreveu o primeiro livro infantil em 2008, o “Vila felina” seguido de Conde Van Pirado, Vila Encantada, Sara e os óculos mágicos, Coleção Pápum e Coleção Fuá. Para adultos lançou “Fragmentos & Estilhaços” e “Colcha de Retalhos” com poemas, crônicas e contos: http://www.simonealvespedersen.blogspot.com


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A Poesia de Neire Ariadna!



A Poesia da goiana Neire Ariadna.

por Altair de Oliveira


Hoje, a nossa coluna de "poesia como a vida" apresenta a poeta e professora goiana Neire Ariadna e alguns de seus belos poemas para que nos embale com poesia em mais uma semana vida adentro. Neire promete nos brindar brevemente com as suas primeiras publicações em poesia!

Apesar de ter iniciado a sua formação com matemática e de, só posteriormente, ter voltando seu aprendizado para o mundo das letras, Neire sempre foi apaixonada por literatura e cultivou a poesia desde que teve contato com ela, em sua tenra infância. O amor às palavras fez com que ela, assim que pode, norteasse a sua vida ao estudo, ao ensino, e à prática literária. Há muito de metalinguagem em seu poemas e há também uma preocupação constante em traduzir os acontecimentos da vida à uma forma neirediana de ver, à forma poética muito peculiar dela, que é bem bonita.

Embora mantenha o exercício da escrita há muito tempo, só agora a poeta planeja a publicaçõa de seus primeiros trabalhos, os livros "Sopa de Pétalas" e "A mosca Filosofante", que devem ser editados no início do ano que vem. O primeiro trabalho traz uma coletânea de poemas da autora e no segundo ela apresenta seus textos em prosa (contos, crônicas, ensaios, pensamentos). Vamos então aguardar e conferir!

A poeta, que teve sua infância e fez seus primeiros estudos em Goiás, teve sua formação universitária no Rio Grande do Sul, e atualmente está radicada em Catalão-GO onde, além de compor seus escritos, é também professora e dirigente escolar. Tenham todos uma boa leitura e uma semana grandiosa!




Um pouco mais sobre Neire Ariadna

Neire Maria Nascimento nasceu na pequena cidade de Ouvidor-Goiás, em 26 de agosto de 1984, morando e construindo boa parte de sua história em Porto Alegre-RS. Filha de pessoas humildes, estudou em escolas públicas até que terminasse o Ensino Médio.

A pedido do pai, estudou Matemática na universidade, muito a contragosto, uma vez que seu amor pelas palavras rege e sempre regeu o motivo de sua vida. Aliás, Neire abandonou as exatas e foi cumprir o destino de estudar Letras. Inclusive, ela se justifica, nesse contexto, dizendo que a fórmula cartesiana “Penso, logo existo” sofreu mutações até virar “sinto, logo sou”.

Apreciadora das artes, dedica seu tempo livre à pintura em tela e em cerâmicas, arriscando-se a cantar com amigos esporadicamente. O ato de escrever em sua vida é como ela mesma diz: “costurar as palavras”, já que desejou na infância ser costureira e não teve talento para tal.

Como professora de idiomas e tradutora, Neire tem oportunidade de vivenciar experiências interessantes uma vez que conviva com muitas pessoas. Amante de Mitologia grega, tem sua licença poética para o cognome “Neire Ariadna”, sendo também eterna apaixonada por História e pelos sonhos – com os quais ela viaja o mundo inteiro num barquinho de papel”.



Três Poemas de Neire:



- I -


É O CLÍMAX

E os hormônios se aceleram

E se começa a suar

É o clímax de qualquer situação

Quando alguém é a pessoa má

Quando há protagonista com antagonista

Quando personagens secundárias auxiliam

Ambas as partes sem muito ajudar

Embate de um contra o outro

Uma surpresa atrás da outra

Pode sair uma catástrofe

Ou uma pomba da paz

Pode surgir um beijo

E virar luta de amor

Uma gama de possibilidades

Pode ser guerra

Entre a bela e a fera

Ou surgir um arco-íris após o temporal

Perdas e ganhos com prováveis empates

O cravo pode sair ferido

A rosa despedaçada

O cravo pode ter um desmaio

Só para a rosa o consolar

E por fim saírem todos ilesos

Ou serem atores de uma trama

Cujos autores perderam rimas e pontos


Poema de Neire Ariadna


- II -


EU TE RESPIRANDO


Eu nasci e fui criando toda uma estrutura

Para suportar os dias vazios e opacos

Para tolerar os amores vadios e fracos

Até que pudesse te resgatar

Das tuas cadeias e desilusões também

É como se eu esperasse por ti sem saber

Quando cruzamos miríades de vezes o mesmo caminho

E guardasse tua busca como um dever

Uma ordem intransigente vinda do além

De que desejássemos cada célula um do outro

Querendo entrar nos rins e no fígado

Nas partículas de ar e asperezas

Tudo possível para chegar ao coração

Acariciando-nos em alegrias e tristezas

Eu te esperando já quase desiludida

Como se te estendesse as mãos do outro lado do mar

E me olhavas de longe sem entender o gesto

Nós dois em margens opostas beijando outros sem gostar

Pois em nada se pareciam a nós

E agora me dizes que sou tua voz

Que nosso encontro era o sol da tua espera

Quando os fatos estavam totalmente desconexos e escuros

Nós então adultos para o sexo e puros

Eu te respirando aqui no travesseiro

Enquanto me seduzes e dizes que sim

Que me amas exclusivamente e não temos fim

Eu te respirando intensamente

É assim

Sim



Poema de Neire Ariadna


- III -


SOLIDÃO - Um Patrimônio Histórico.


A SOLIDÃO é uma casona!

Quem nela mora sabe contar direitinho

quantos cômodos ela tem

sabe bem de cada canto seu...


E, depois de estar ali acomodado,

o inquilino descobre saídas secretas;

ao limpar a poeira, vê nítidos nomes escritos,

bem firmes, em suas paredes de madeira...


O casarão, antes mal-assombrado,

torna-se obra de arte maciça -

uma mansão decorada e aberta a turistas.


Seu destino, então, é ser tombada,

ser um patrimônio histórico;

lá dentro do peito de quem a visita.



Poema de Neire Ariadna




Um Pensamento da Poeta:

"Todo homem quer ser o primeiro na vida de cada mulher que por ele passa. E cada mulher quer ser o último caso de todo homem".




Para Ler Mais:

Página da autora no Recanto de Letras: http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=57162


***


Ilustrações: 1- foto da poeta Neire Ariadna; 2- foto de cena do filme SIN CITY, do americano Frank Miller; 3- foto de desenho e de cena do filme SIN CITY, também de Frank Miller.


***

Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve quinzenalmente às segundas-feiras no ContemporARTES a coluna "Poesia Comovida" e conta com participação eventual de colaboradores especiais.
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Minha literatura




            Eu caminhava pelas ruas com profunda raiva da empresa telefônica que acabara de me iludir. O toque familiar do meu celular prenunciara a mensagem que chegaria, e eu, carente que sou, me remexi de imediato para colher as migalhas de atenção de um amigo fiel que se lembrasse de mim. Olhei famintamente a tela do aparelho, esperando mesmo alguém que me pedisse algo ou me cobrasse uma promessa da qual houvesse esquecido, mas o texto não denunciava cobrança ou raiva, amor ou desespero. Uma daquelas promoções – que se fossem realmente boas não precisariam ser tão divulgadas – estendia-se faceira pelo cristal líquido já danificado do meu telefone, desmantelando a esperança que eu tive de ser lembrado por alguém. Nas ruas, nas grandes ruas, a profunda indiferença recíproca que eu e o mundo cultivamos se tornava evidente e gorda. Apresso o passo, sem saber direito por quê.

            Abro a parte da frente da minha mochila pesada repleta de coisas que não usei durante o dia e tiro um biscoito barato que como sem fome. Poucas vezes obedeço o estômago em comer; me acostumei a obedecer aos músculos cervicais cuja tensão alivio na ânsia de engolir algo adocicado artificialmente. Sinto o mal estar habitual dessa hora do dia. O corpo pede urgentemente um banho.

            No meu estado de espírito, eu não estava preparado para o que eu iria encontrar naquela esquina. Limpando a boca de farelos ingratos, me surpeendi ao ver uma menina de pé, completamente imóvel – a não ser pelos globos dos olhos, que caminhavam para um lado e outro. A figura compunha-se de forma extremamente peculiar: usava um cachecol verde  lindo, um par de botas lindas, um casaco preto lindo e uma boina sofisticada e linda, que formavam uma imagem sobremaneira esquisita quando vistos em um só conjunto. E o mais interessante era que a menina segurava um livro.

            Diminuí o passo de forma quase maquinal e contemplei aquela cena. Meu pudor e minha fleuma social me impediam de parar e tentar ouvir uma palavra sua, e minhas pernas continuaram à contragosto. Admirei sucintamente sua coragem e concentração em ler no meio daquele caos frenético de uma esquina no centro da cidade. Não consegui perceber qual livro era. Não reparei no seu rosto nem eu seu corpo, mas tive a certeza absoluta de que era linda. O fascínio da imagem me cativara mais que tudo, e caminhei torcendo a cabeça para trás e vê-la, antes que nós dois nos perdêssemos para sempre de volta na imensidão da vida.

   Aquilo, para mim, foi literatura.
         



Waldyr Imbroisi Rocha, graduando do curso de Letras (UFJF). Realizou pesquisas nas áreas de Educação Bilíngue (BIC - UFJF) e trabalha atualmente com relações entre Literatura e História, dedicando-se especialmente aos contos maravilhosos. Atuou como professor de inglês para crianças e de português/literatura a nível de ensino fundamental e médio.


A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.
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