Nova Moscou
A definição oficial contendo estatutos da definição clássica do modelo artístico e cultural criado, a partir das influências dos pensadores e políticos soviéticos que queriam homogeneizar a produção cultural na URSS, só aconteceu em 1934. Isto se deu no Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos, cujo estatuto definiu a fórmula doutrinária que deveria ser seguida. A parte principal deste documento pode ser lida abaixo.
O realismo socialista é o método básico de literatura e da crítica soviética. Isto demanda do artista uma representação verdadeira, historicamente concreta da realidade, no seu desenvolvimento revolucionário. Além disso, a veracidade e concretude histórica da representação artística da realidade devem vincular-se com a tarefa de transformação ideológica e a educação do s trabalhadores no espírito do socialismo (TERTZ,1960 apud KENEZ, 2003, p.143).
Na prática, estas decisões do Congresso de Escritores Soviéticos, homologaram uma situação que já estava ocorrendo há muito tempo. Este congresso só fez oficializar uma doutrina de gestão e representação cultural que já estava sendo implementada, desde o final dos anos 1920’s.
Não demorou muito tempo para que a homologação oficial da doutrina do realismo socialista impactasse, diretamente, na história da organização do cinema soviético.
Clark (2003), ao se referir ao realismo socialista, questionou a ampla aplicabilidade deste conceito. Para esta autora só alguns romances soviéticos con seguiram expressar, em sua totalidade, os códigos verbais, e de signos, característicos da cultura stalinista. Esta autora coloca que a chave do conceito está nos heróis positivos, encarnados neste tipo de literatura e que incorporaram, nas suas histórias, valores públicos, relacionados ao progresso da nação em direção ao comunismo. Eles também legitimavam o status quo como situação social benéfica para o caminho correto da trilha marxista-leninista. Ainda de acordo com Clark (2003, p. 14), estes heróis tinham como função principal mediar as relações entre as províncias e Moscou: “Sua principal função era fazer a mediação entre as províncias (periferias) e Moscou.”
Geralmente, estes romances da literatura soviética eram ambientados na periferia das cidades, ou nas áreas rurais. Os motivos que levaram às representações periféricas dos heróis positivos podem ser compreendidos melhor, quando consideramos que houve, na URSS, a presença de dois sistemas binários de referências culturais.
Quando utilizamos o vocábulo binário estamos nos referindo, à coexistência de dois sistemas culturais: um que representava os valores do passado imperial russo, e outro que estava sendo construído pelos bolcheviques. Nesta conflituosa perspectiva, relativa ao modelo cultural que os comunistas almejavam hegemonizar na URSS, os heróis positivos, principal característica do realismo socialista, tinham aspectos que os identificavam com os espaços sociais limítrofes aos grandes centros urbanos, pois historicamente a periferia sempre foi o local onde estavam as massas. Já o espaço urbano foi identificado com os grandes líderes do partido, portanto foi representado como um lugar especial, destinado às grandes personalidades. O que pode ser interpretado como uma forma inconsciente de absorção de valores culturais oriundos do czarismo russo, pois na Rússia dos czares, as cidades também tinham esta aura de lugar reservado às pessoas importantes.
Este fenômeno narrativo propiciou segundo Clark (2003), a antropomorfização de determinados símbolos espaciais, dentre eles, as novas construções e monumen tos que os comunistas estavam planejando erguer, durante a vigência da URSS.
Em outros campos artísticos, onde a narrativa não existe, ou é um componente pequeno, não havia possibilidade dos códigos serem expressos da forma como foram na literatura soviética da década de 30. Porém, ela faz uma observação muito sutil, mas extremamente válida para um entendimento da complexidade em que se manifestou o realismo socialista. Clark (2003, p. 5) advoga que, de forma diferente da literatura, a arquitetura desempenhou um elemento singular da propagação dos valores relacionados à cultura staliniana, principalmente no que se refere ao remodelamento do espaço. “A purificação ou re-purificação do espaço provou ser uma obsessiva preocupação com a cultura stalinista.”
Segundo esta autora, a arquitetura foi a expressão artística que melhor contribuiu para sacralizar, no espaço, os valores da cultura stalinista. Em 1931, mesmo ano em que Gorki retornou à Rússia, diversos líderes do partido discursaram sobre a necessidade de o governo soviético reconstruir o país, através do remodelamento estético dos conjuntos arquitetônicos, existentes na URSS, e que remetiam ao passado pré-revolucionário, caracterizado pelos bolcheviques, como uma época de atraso industrial, referente à ruralização da Rússia. Para alguns líderes do Partido, o período socialista deveria ser eternizado, através de grandes obras que expressassem os benefícios que o sistema social soviético trouxe para os cidadãos. Levando em consideração que era necessário eternizar ícones que ajudassem a consolidar no imaginário social, elementos voltados para a construção de uma identidade nacional soviética, o uso da arquitetura como mecanismo de re-significação das relações entre o sujeito e o espaço foi bem articulado, do ponto de vista estratégico.
Termos da arquitetura como: edificação, fundação, recons trução se tornaram usuais na sociedade. Isto foi tão evidente que também em 1931, o plenário do Partido decidiu e anunciou que a maioria das cidades soviéticas deveriam ser reconstruídas, segundo valores estéticos, oriundos do Marxismo-Leninismo. Para verificar a eficácia destas decisões, relacionadas à reconstrução e reordenação das cidades, diversos supervisores foram encarregados de verificar o sucesso das obras.
Em seguida, no plenário do Partido, em junho de 1931, um plano para reconstrução de muitas das cidades soviéticas foi anunciado. Posteriormente, ao longo das décadas, os planos de construção de cidades e edifícios foram supervisionados, de perto, por líderes do Partido, especialmente por um dos líderes do Partido em Moscou, Lazar Kaganóvich que, em 1933, foi apontado como chefe do corpo de supervisores do Arkhplan . Seja como causa, ou como efeito, a retórica do Partido, em reconstruir as cidades soviéticas, serviu para elevar as transformações morais e políticas de toda a sociedade em direção ao comunismo. (CLARK, 2003, p. 4).
Estas ambições, referentes à sacralização arquitetônica dos pr essupostos de organização social do marxismo-leninismo, presentes nos modelos artísticos e de comportamento, oriundos dos paradigmas do realismo socialista foram expressas, explicitamente, através de alguns filmes.
Nestes filmes, confirmamos a opinião de Fitzpatrick (1999) de que boa parte da reconstrução espacial foi enfocada na construção de palácios: Palácios dos Esportes, Palácio do Trabalho, Palácio da Cultura: o que deve ser encarado como uma contradição, com a renegação do passado, objetivada por estas construções, pois os palácios sempre foram identificados com as classes dominantes, em especial, com a nobreza.
Um destes filmes que expressa estas mudanças arquitetônicas, vislumbradas pelos adeptos do realismo socialista durante 1930’s, se chama “Nova Moscou” (1938) e foi dirigido por Alexander Medviêdkin. Mesmo sendo um filme com claro teor propagandístico das transformações arquitetônicas, ele não foi autorizado pela censura a ser exi bido nos cinemas. Porém, ao contrário de muitos filmes soviéticos que foram engavetados durante década os anos 1930, é possível analisá-lo na atualidade, pois uma de suas cópias foi preservada.
Neste filme estão contidos alguns dos projetos de reconstrução de Moscou, baseados nas diretrizes de reformulação das cidades soviéticas. As tomadas mais interessantes se passam em um cinema. Neste local, há uma tribuna na frente da tela de exibição, cuja moldura contém imagens de Stalin vislumbrando Moscou, reconstruída. No púlpito, uma personagem responsável pela apresentação da película dirige-se à tribuna e desculpa-se por um erro do projetor que está transmitindo a imagem de trás para frente. Ao perceber este erro, ela se espanta e comenta: “Quem está fazendo isso? Moscou está voltan do no tempo”. O seu espanto está no fato de que o erro do projetor criou imagens onde as novas intervenções arquitetônicas dos bolcheviques são implodidas e substituídas por símbolos espaciais, oriundos da arquitetura czarista e da igreja ortodoxa.
Após consertar o erro de projeção, inicia-se o “filme” dentro do filme, cujas primeiras cenas foram elaboradas a partir de técnicas de montagem, que justapuseram imagens artificiais e reais de locais – igrejas ortodoxas, ruas estreitas sem calçamento, favelas – com os projetos de remodelamento urbano, almejados pelos líd eres do partido. Cadencialmente, os símbolos da Rússia pré-revolucionaria foram apresentados e substituídos por construções modernistas. Durante o filme, fica claro que a intenção do roteiro, e da edição, foi comparar os modelos arquitetônicos do regime czarista, demonstrado-os como reflexo do atraso medieval, com os planos de urbanização do Partido, identificados no filme, como o ideal de progresso e prosperidade.
A partir de um determinado momento do filme, as imagens de “Nova Moscou” foram planejadas para demonstrar o efeito progressista que e stas construções teriam na paisagem de Moscou, ou seja, estas tomadas visavam demonstrar como a capital soviética iria se transformar com as intervenções arquitetônicas edificadas durante o regime soviético que, em tese, iriam melhorar a qualidade de vida da população. Da mesma forma que a parte anterior do filme caricaturou o passado czarista e atrasado da Rússia, o futuro também foi construído a partir da justaposição de imagens reais e artificiais da velha Moscou com maquetes que simulava m a paisagem após as intervenções.
Nesta película, é possível visualizar alguns ícones destas mudanças espaciais e arquitetônicas propostas pelos bolcheviques: construção do Palácio dos Soviets , Praça Puchkin, Praça da Revolução, Avenida da Academia de Ciências. Vários destes projetos nunca saíram do papel. Mesmo alguns que chegaram a ser executados não foram concluídos, como o Palácio dos Soviets, cujas obras começaram em 1937, mas devido à invasão alemã, e problemas com as fundações, sua construção teve que ser interrompida. Após a guerra, os soviéticos não conseguiram terminar o projeto e transformaram a planta original numa piscina recreativa. Além destes problemas técnicos, houve uma série de rumores, entre a população soviética, de que o “trabalho do diabo tinha sido devidamente punido” (FITZPATRICK, 1999, p. 68), pois o local escolhido para a construção do palácio era o mesmo da Catedral do Cristo Salvador, demolida pelos bolcheviques no começo dos anos 1930’s.
Segundo Fitzpatrick (1999), atrás do novo mundo pretendido pelos ideólogos do Partido, estava o velho mundo. Medviêdkin sabia disso ao filmar “Nova Moscou” (1938). O filme incomodou as autoridades soviéticas por dizer aquilo que não poderia ser dito, mesmo que de forma pejorativa e anedótica. O passado imperial russo ainda existia. Para a burocracia partidária, a maximização das realizações soviéticas não deveria ser abordada em uma comédia, gênero no qual “Nova Moscou” se enquadra.
As figuras, a seguir, foram frames retirados de “Nova Moscou”. Elas remetem ao passado pré-revolucionário, e ao futuro pre tendido pelos soviéticos.
Diogo Carvalho é Historiador pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente desenvolve mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA), onde realiza pesquisas sobre o cinema soviético. Membro da Oficina de Cinema-História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFBA). Trabalha com os seguintes temas: cinema, culturas, História, cultura digital, política humanidades e literatura beatnik. diogocarvalho_71@hotmail.com