Um livro pra chamar de seu...
Todo mundo tem um livro de cabeceira. Ou deveria ter. Essa expressão "livro de cabeceira" é antiga e até onde sei, refere-se àquele livro especial, favorito, que fica na mesinha que se tem ao lado da cama, a tal "mesa de cabeceira". E não à toa que fica ali, ao lado da cama. É justamente para se ler antes de dormir, momento que infelizmente, usamos para refletir sobre a vida. Digo infelizmente porque muitas vezes essa reflexão nos tira o sono. Pois o tal "livro de cabeceira" serve exatamente para isso. Para nos ajudar com os cotidianos e humanos problemas que enfrentamos.
Descobrir o seu "livro de cabeceira" é sempre uma aventura. É como a paixão, inesperada. E pode chegar a qualquer momento. O meu apareceu na minha vida quando eu tinha quatorze anos. Veio emprestado por uma amiga, professora de literatura, que com sua caligrafia delicada, escrevia em todos os livros, como uma dedicatória: "Emprestar é um prazer, devolver é um dever". E assinava, na tentativa de receber de volta os livros que emprestava com tanto prazer. Acho que perdeu muitos livros, pois nem todos entendiam como um dever a devolução. Eu não devolvi. Confesso. Mas explico o porquê.
Eu pegava sempre uns quatro ou cinco livros, lia todos e devolvia. Mas sempre tecia comentários quando os entregava a ela, que conhecedora profunda de Literatura, também fazia seus comentários (muito mais qualificados do que os meus, é lógico!). E com isso eu aprendia e ela ensinava. Era uma troca entre duas mulheres: eu dava a ela a oportunidade de exercer o ofício que amava e ela me dava conhecimento. Quando fui devolver os livros, comentei que nunca, em toda a minha vida (looonga, de 14 anos) eu havia gostado tanto de um livro. Embora pareça um comentário exagerado, devo dizer, em minha defesa, que eu com essa idade, já era uma leitora voraz, pois lia tudo o que me caía nas mãos, sem muito filtro. Naquela época, eu finalizava todo o livro que começava, gostasse ou não. Era uma regra para mim.
Ela me perguntou porque eu havia gostado tanto do livro. Eu, que sempre tinha tanto a dizer, de repente fiquei sem palavras. Não soube explicar meu sentimento sobre o livro. "Não sei. Não sei porque gostei tanto dele, mas gostei". É não é assim também que se explicam muitas paixões e amores?
Então ela, generosamente, me disse: "Então o livro é seu. Talvez se torne o seu livro de cabeceira".
Pois se tornou mesmo. Eu li e reli aquele livro várias vezes, e sem muita ordem. Grifei vários trechos. Quando viajava, levava junto. E para qualquer problema, qualquer um mesmo, eu buscava a orientação no livro. Parece que ele foi escrito para mim. Acho que é assim que você reconhece seu livro de cabeceira. Posso garantir que ter um livro de cabeceira economiza anos de terapia... Quando levei meu primeiro fora, por exemplo, ao invés de ficar choramingando pelos cantos, busquei a resposta no livro. E pasme! Ela estava lá:
É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais (LISPECTOR, 1998, p. 9).
Então, era a liberdade? Não era mais uma tristeza, mas a volta da minha liberdade. Você já descobriu a autora, Clarice Lispector. E o livro? Água Viva, escrito em 1973. O livro que eu tinha era uma edição do Círculo do Livro, pequeno e branco, com uma figura estilizada de mulher na capa. Infelizmente um dia eu o emprestei, mas com coração doído, com aquela intuiçãozinha dizendo para não emprestar, mas emprestei, para exercitar o desapego. Sempre tentei fazer isso, exercitar o desapego, liberando justamente as coisas que eu mais gostava, atitude que se originou das minhas leituras budistas. Eu já tinha uns vinte e poucos anos e pedi para a pessoa, "leia, mas me devolve por favor, porque eu AMO esse livro". Minha intuição sempre aguçada, porém, me dizia que seria a última vez que o veria. E foi. Nunca mais voltou. O meu livro favorito. Todo marcado a lápis, comentado, ele próprio, um registro vivo das minha emoções e descobertas ao longo de quase uma década...
Na época, tentei comprar a mesma edição, mas não consegui. Mais tarde, comprei um da Editora Rocco e logo percebi mudança no texto. Fiquei um pouco confusa, mas de fato, há diferença entre essa edição do Círculo do Livro e a outra. Mas valeu a compra e ele está comigo ainda. Em 2009, terminando a escrita da dissertação de Mestrado, sabia que meu livro de cabeceira poderia me dizer algo. E imagine, ele disse, o que coloquei como epígrafe nas considerações finais:
Tudo acaba, mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas (LISPECTOR, 1998, p. 86).
Se você ainda não leu este livro, garanto que vale muito a leitura. Clarice, com seu estilo único, consegue descrever o universo feminino com maestria. O livro todo é uma carta, escrito justamente para o homem que não está mais com ela. Leia, que vale a pena. Só não me peça emprestado. Porque ESSE livro, eu não empresto!
Vanisse Simone Alves Corrêa é doutoranda em Educação pela UFPR e co-editora da Revista Contemporartes. Ela ainda acredita na prática do desapego. É capaz de se desapegar de quase tudo, menos do seu livro de cabeceira.
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