Figurinhas na Copa do Mundo - Colaboração do Leitor

Ontem o Brasil foi classificado como primeiro do grupo pelo empate de 0X0 com Portugal. Porém, a paixão pela Copa e pelo futebol se expressou mais cedo com o hobby que virou mania nacional - o álbum de figurinhas da Copa. A estudante de Sociologia do IFCH - Unicamp - Aline Hasegawa faz uma interessante análise do "fenômeno".

Ana Maria Dietrich, historiadora, é coordenadora do Contemporartes.



Dar – receber – retribuir: as redes de sociabilidade e as figurinhas da Copa




Fazer uma etnografia das trocas de figurinhas do álbum da Copa significa, antes de tudo, entender a lógica de um colecionador: nem sempre as figurinhas dos craques - como Thierry Henry, Ballack, Ronaldinho Gaúcho - são as que mais valem no "mercado de trocas". A questão é outra: pode ser que um jogador não muito conhecido, de uma seleção não tão popular fique altamente cotado nas transações se, por acaso, essa figurinha estiver em falta. O que conta, afinal, é completar o álbum. Não se trocam as brilhantes (brasões das seleções, o troféu, o mascote, etc.) por quaisquer jogadores - que não são figurinhas brilhantes. As figurinhas dos estádios tampouco são de mesmo valor que as dos jogares, apesar de não serem brilhantes. Amigos dão figurinhas de presente de aniversário, recebem figurinhas de jogadores que gostam, trocam figurinhas importantes. As trocas de figurinhas retomam questões de sociabilidade que podem passar batido.

Muitas vezes, os álbuns são presentes dados por familiares para entes queridos e acabam tornando-se o passatempo do fim-de-semana. É claro que dar o álbum e não dar junto nenhuma figurinha representa um presente de grego, um verdadeiro cavalo de Tróia, uma vez que a compra de figurinhas é um hábito como o próprio vício do cigarro: não é barato. Vira, às vezes, motivo de competição entre os sogros, genros e noras aquele que presenteia com mais figurinhas e/ou aquele que presenteia com o pacote com mais figurinhas aproveitáveis - ou seja, aquelas que poderão ser coladas no álbum ou que virarão valiosas figurinhas nas trocas.

Nem sempre o objetivo de completar o álbum é o mais imediato. Está implícito, nas regras das trocas, a reciprocidade: troca-se normalmente com aquelas pessoas com quem você já tem algum laço de solidariedade (amigos de infância, colegas de faculdade, companheiros de trabalho, vizinhos, parentes, cunhados, genros, etc.) No caso de duas pessoas quererem a mesma figurinha, a preferência é daquele com quem a pessoa tem mais afinidade, ou seja, quem está mais próximo no cotidiano. Enxergar nessa preferência uma racionalidade prática é limitar a capacidade criativa das relações sociais, as redes de solidariedade e afinidade são ativadas e desativadas nas situações mais inusitadas; e limitar-se a fazer uma leitura das formas de sociabilidade a partir de sua prórpia perspectiva: quem disse que trocar figurinhas com o Tio da cantina é mero espírito prático e racionalidade exacerbada?

Existem os casos de plena desigualdade nessa relação de troca, quando uma das parte possui muito mais figurinhas para trocar do que a outra parte. Isso normalmente acontece quando uma das parte comprou muitas figurinhas e já está quse completando o seu álbum e a outra ainda está apenas começando ou indo em um ritmo mais lento nas compras. Assim como a regra básica do capitalismo em que mais significa cada vez mais, nessa caso a regra é subvertida porque estão em jogo aqui as redes de solidariedade, portanto, não se lucra em cima de seu amigo: a parte menos favorecida em número de figurinhas normalmente escolhe as que lhe serão útil e as contabiliza. Ela acaba ficando com muitas figurinhas para colar em seu álbum enquanto a outra parte não trocou nada que lhe interessasse, apenas trocou figurinhas repetidas por figurinhas repetidas, mas fez seu amigo feliz.

Além de todas essas questões que a rede de troca de figurinhas levanta, o próprio lançamento dos álbuns ser feito antes de os técnicos e confederações convocarem suas seleções gera e ativa mais e mais redes de vizinhança. Numa rápida busca pela internet pode-se encontrar figurinhas de jogadores que não estavam nas previsões, mas que foram convocados - Grafite; figurinhas de jogadores que as pessoas esperavam que fossem convocados, não estavam nas previsões e não foram convocados - aqui os exemplos são conhecidos de todos os brasileiros: Paulo Henrique Ganso e Neymar. Acima da questão capitalista de vender essas figurinhas inéditas está o desejo de cada colecionador e torcedor da seleção brasileira de ver o jogador que mais lhe cativa, o seu ponta-de-lança, o grande guerreiro que veste o manto verde e amarelo contemplado na memória material - o álbum - que a grande copa de 2010, na África, está prometendo como acontecimento.

Aline Yuri Hasegawa cursa o último semestre em Ciências Sociais na UNICAMP, ministra aulas de inglês no cursinho popular Identidade Popular, tem interesse em Sociologia Rural e na agroindústria canavieira. Já realizou iniciação científica no tema, além de diversas atividades acadêmicas e de extensão universitária.
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A morte física, do corpo; a morte da dignidade, da alma.




E se eu ficasse eterna?


Demonstrável

Axioma de pedra.


Hilda Hilst ( Da morte, Odes Mínimas)

Existem vários tipos de morte e distintas formas de morrer. É possível experimentar a dor da perda em muitas situações. Nosso corpo não é eterno, portanto pode morrer. Temos uma relação de cumplicidade e reciprocidade com ele, enquanto nos oferece prazer, cuidamos dele para que fique vivo e saudável. Corpo ora forte, ora frágil, que abriga 10 trilhões de células, mais 90 trilhões de células de microrganismos que vivem em simbiose com o nosso organismo, permanecendo em constantes mudanças e rearranjos, trabalhando constantemente para nos manter vivos.  Sem o corpo não podemos viver, portanto a morte dele representa efetivamente a morte do nosso ser. 

Bjork em
Dançando no Escuro



Não é só o corpo que morre e se esvai; os sentimentos também podem acabar definitivamente, como o amor, o amor sexual, sensual, carnal ou Shakespeariano. Sábio Shakespeare que, para eternizar o amor puro e único, matou  suas personagens. Os ídolos, heróis e crenças também podem morrer, os ideais, a credibilidade nas instituições, nos governos. Será que há dor semelhante a da morte? Lembrei-me de Dançando no Escuro(Dancer in the Dark), 2000 de Lars Von Trier, um filme estrategicamente melodramático, no qual morrer não é pior que não enxergar.




Ensaio sobre a cegueira

No livro, Ensaio sobre a Cegueira, 1995 de Saramago ou no filme homônimo de Meirelles, de 2008, a constatação da epidemia da cegueira da humanidade desorganiza as relações interpessoais e toda a sociedade. Em Saramago ou Meirelles, como em Lars Von Trier, a morte também pode estar na cegueira.

Saramago



“Por
um instante a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se até às
paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até à
sala
contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que
estava
aberto sobre uma cadeira, era a suíte número seis opus mil
e doze em
ré maior de johann sebastian bach composta em cöthen e
não precisou
de ter aprendido música para saber que ela havia
sido escrita, como a
nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da
alegria, da unidade
entre os homens, da amizade e do amor. Então
aconteceu algo nunca
visto, algo não imaginável, a morte
deixou-se cair de joelhos, era
toda ela, agora, um corpo refeito,
e por isso é que tinha joelhos, e
pernas, e pés, e braços, e
mãos, e uma cara que entre as mãos
escondia, e uns ombros que
tremiam não se sabe porquê, chorar não
será, não se pode pedir
tanto a quem sempre deixa um rasto de
lágrimas por onde passa,
mas nenhuma delas que seja sua. Assim como
estava, nem visível
nem invisível, em esqueleto nem mulher,
levantou-se do chão como
um sopro e entrou no quarto."
José Saramago.

As intermitências da
morte.




Todos nós já vivenciamos a morte, pelo menos alguns tipos dela e, certamente, a morte, aquela que acaba com nosso corpo e que nos carrega do mundo, sozinhos e indefesos, também chegará... como chegou para Saramago que morreu na semana passada com 87 anos. 






“Acabo
de ver o escritor José Saramago morto. Quando a notícia
apareceu
na Internet, liguei pelo

Skype

para Pilar (esposa de Saramago), que sem que eu pedisse me
mostrou
José deitado na cama, morto.” Luiz Schwarcz, na
Folha, Caderno
Especial, sábado, 19 de junho de 2010.


Saramago morto na cama sendo visto pelo seu amigo pelo 



Skype.


Saramago, enfim  deitou-se nos braços da senhora suprema. 
Invasões Bárbaras

As diversas formas de morrer surgem também da estratificação social, das diferenças religiosas e culturais de um povo. Até o último suspiro de um ser essas diferenças podem se tornar muito evidentes. Tomando como base o Brasil, é provável que morrer em um hospital público seja bem pior do que morrer no Albert Einstein. No entanto, na guerra, morrer é rotina..., às vezes honra, mérito outras vezes fracasso. Morrer de fome e/ou na miséria é a última instância de uma seqüência de mortes correlatas;  da dignidade, dos princípios e até mesmo das crenças .... No filme Invasões Bárbaras (Les Invasions Barbares), (Canadá/ França,2003),  do diretor Denys Arcand, vemos e sentimos a morte do personagem Rémy, que junto com morte de seu corpo carregou também a morte de toda uma geração que acreditava no socialismo, nas vanguardas históricas com todos seus “ismos” e nas ideologias de um tempo remoto.  Rémy está morrendo, mas a questão aqui é, de que forma? O que Rémy leva com ele? O que fica dele?



O escritor russo Ivan Turguêniev escreveu a Tolstói em seu leito de morte:

“Faz muito tempo que não lhe escrevo porque tenho estado e
estou,
literalmente em meu leito de morte. Na realidade,
escrevo apenas
para
lhe dizer que me sinto muito feliz por
ter sido seu
contemporâneo, e
também para expressar-lhe
minha última e mais
sincera súplica. Meu
amigo, volte para
a literatura!”.

Nesta época, Tolstói havia abandonado a literatura para dedicar-se à vida espiritual.  A novela, A Morte de Ivan Ilitch, publicada em 1886, foi a primeira obra escrita por Tolstoi depois da carta de seu amigo dando início a sua volta a literatura. Será que o pedido do moribundo Ivan Turguêniev foi decisivo para Tolstói voltar a escrever? Até que ponto é importante o desejo de um agonizante?



Quincas Berro
d'Água

No filme, Quincas Berro d’Água, 2009, uma adaptação do livro A morte e a morte de Quincas Berro d’Águade Jorge Amado, 1959, a morte de Quincas é um momento de virada, de escolha de uma nova morte, a escolha de como se deve  morrer.

 “Pouca
gente tem a coragem de jogar tudo pro alto e começar uma
vida
nova, de
quebra ainda consegui inventar o meu jeito
de morrer,
morrendo uma morte
porreta digna de um velho
marinheiro... uma
coisa você tem de concordar,
minha vida
de morto é muito mais
animada do que muito vivo por ai?”


(Voz-over de Paulo José interpretando Quincas no filme)

Alguns acreditam que a morte iguala os seres vivos pois tudo que é vivo morre. A questão é, o que é morrer? Como morrer? Quantas coisas já morreram em nossas mãos, em nossos corações, em nossas almas, cabeça, útero, vísceras? Quantas pessoas já perdemos?

Minha vovó materna, linda que gostava quando eu tocava exercícios de Hanon no piano, que pena! nunca soube porque ela gostava tanto de Hanon. Meu cunhado, lindo João, o pai de Yuri, meu querido sobrinho e ex-marido de minha mana Célia, morreu novo, aos 38 anos na frente do Yuri e da Célia. Ari Gomes, querido...  jornalista, companheiro de trabalho, morreu em dezembro passado, Ari, que saudades dos nossos papos...


Lembro-me da minha querida dog Gabi.... o impetuoso Sebastian, cão temperamental... todos se foram pelas mãos da grande e poderosa morte.

Existem também aquelas mortes de coisas, de valores e de credibilidade. Comigo aconteceu algo estranho, bizarro, que anunciou a morte de algumas coisas...  tudo começou nesta semana, quando senti aquela sensação de perda, descaso e engano. Me inscrevi no Concurso da Unifesp Guarulhos na área de História da Arte, subárea Cinema
Contemporâneo. Essa história começa exatamente assim: desde o dia 30 de maio, dia da inscrição, estava ansiosa olhando várias vezes no site da Unifesp para saber o dia do concurso, que segundo  o pequeno e único papel dado no dia da inscrição, sairia pelo site e teríamos que ficar atentos. No edital dizia que a data da prova  seria entre 14  e18 de junho. Olhei muitas e muitas vezes, ao ponto de aparecer até aquela estrelinha de preferência no site da Unifesp, e depois continuei a olhar, e a olhar todos os dias, até chegar na data provável 14/06. Olhei 3 vezes no dia 14/06, 5 vezes no dia 15/06, e finalmente no dia 16/06, quarta-feira, ufa! lá estava, a prova havia sido marcada para dia 23/06 às 9:30. Logo me prontifiquei em ligar para o meu trabalho avisando que dia 23/06 não poderia ir em decorrência da prova. Depois, no dia 17/06, comecei a organizar meu material, minhas anotações de estudo, minha aula. Olhei novamente no site, para me certificar do dia, confirmado dia 23/06. Sexta-feira, pela manhã, antes de trabalhar olhei mais uma vez no site, afinal depois de me preparar tanto, eu não poderia errar o dia da prova. Lá estava, dia 23/06, tranqüila trabalhei sábado o dia todo. Fui dormir, domingo descansei um pouco, recebi minha família e amigos para o jogo do Brasil. Segunda-feira, no trabalho, às 8 horas da manha, abri novamente o site da Unifesp e não acreditei no que vi. A prova tinha sido antecipada para o dia 21/06, segunda-feira. Enquanto estava no trabalho, a prova estava sendo realizada lá em Guarulhos e o pior, eu não estava lá. Olhei a data da mudança, sexta-feira à noite? Não pode ser, anteciparam a prova e não avisaram as únicas 20 pessoas inscritas, nem ao menos por e-mail? Fiquei estática .... fiquei inconformada, fiquei pasma.

Perdi o dinheiro da inscrição, 175,00 reais e aquela sensação de morte, morte à dignidade, morte ao respeito aos professores que estudaram se prepararam por mais de um mês!  A dor veio, forte....  da morte da seriedade da Instituição, da morte da comunicação, do dinheiro gasto nas 7 cópias do Memorial e do Currículo Lattes, da credibilidade ...morte... morte... tristeza, cegueira..... tristeza de não ter a quem recorrer...




"Ouviu essas palavras e repetiu-as em seu espírito. 'A morte acabou – disse a si mesmo.
Não existe mais.'




Aspirou ar, deteve-se em meio do suspiro, inteiriçou-se e morreu" 

( A morte de Ivan Ilitch, Lev Tolstói )"





doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela
ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em
Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de
alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento.
Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos.
Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na
UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana
Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.






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Modernismos no Brasil dos anos trinta


No intervalo entre o manifesto antropofágico e sua releitura tropicalista, o Brasil dos anos 1930 vive movimento de unificação cultural, quando se experimenta em escala nacional fatos antes ocorridos no âmbito das regiões. Simultaneamente às importantes transformações políticas que vinham ocorrendo, a classe média ganha espaço político e cultural, o que acaba por  resultar num crescimento de contingente e de poder para o Modernismo. Assim, os modernistas conseguem avançar sensivelmente na ocupação das instituições culturais1. Por exemplo, Lúcio Costa é nomeado para diretor da Escola Nacional de Belas-Artes, o que resulta no incentivo à participação de artistas modernos e na retração – e reação - dos acadêmicos – o que irá transformar a luta pelo controle das instituições culturais num fato importante durante a década. 

Nesse período, retoma seu prestígio de centro cultural o Rio de Janeiro, onde se concentravam intelectuais de todo o país, atraídos quer pela possibilidade de divulgação que ali existia, quer pelas ofertas de empregos em órgãos governamentais. Das mansões paulistas uma política cultural segue para os corredores e salas das repartições culturais. Vivencia-se certa  institucionalização da produção cultural, proporcional à etapa de sedimentação à qual se segue a ruptura modernista dos anos 1920. Apesar de todos os problemas que lhe são interpostos, a arte moderna consegue prosseguir seu processo de afirmação. Nas artes visuais e na literatura, a geração dos anos 30 e 40 desenvolve vários caminhos, sempre figurativos, redefinindo a linguagem artística articulada ao interesse pelas questões nacionais com a elaboração de uma arte de temática social.

Por certo, não se pode, é claro, falar em socialização ou coletivização da cultura artística e intelectual, como bem lembra Antônio Cândido. Afinal, “no Brasil as suas manifestações em nível erudito são tão restritas quantitativamente, que vão pouco além da pequena minoria que as pode fruir. Mas levando em conta esta contingência, devida ao desnível de uma sociedade terrivelmente espoliadora, não há dúvida de que depois de 1930 houve um alargamento de participação dentro do âmbito existente, que por sua vez se ampliou”. Alargamento que pode ser verificado nos campos artístico e literário, nos meios de veiculação, como livro e rádio (que teve grande desenvolvimento), e também nos  estudos históricos e sociais. Tudo isso vinculado a uma nova relação entre intelectual e artista e a sociedade e o Estado, que adota política cultural e educacional como parte de um projeto oficial mais amplo de modernização política, econômica e cultural do país, comprometido com sua independência cultural2. Ao mesmo tempo, assiste-se então à tomada de consciência ideológica de intelectuais e artistas, o que faz dos anos 30 período  de engajamento político, religioso e social no campo da cultura. Mesmo aqueles que não se definiam explicitamente manifestaram na sua obra esse tipo de inserção ideológica.

O momento foi de busca de posicionamento crítico face à chamada “realidade brasileira”. Os “estudos brasileiros” de história, política, sociologia, antropologia apresentam radicalização  crítica em que se destaca, para além da “consciência social”, a urgência de reinterpretar o passado nacional e o aumento do interesse pelos grupos até então menos estudados, como o negro, o índio, o trabalhador rural, o operário, o pobre.  Nessa direção, os recém-fundados cursos superiores de filosofia, ciências sociais, história, letras contribuíram para desenvolver o espírito analítico nos estudos sobre o Brasil, sendo decisiva a contribuição de professores e pesquisadores estrangeiros, temporária ou definitivamente radicados no Brasil, como Claude Lévi-Strauss ou Roger Bastide.

Mais do que em qualquer outro campo cultural, nas artes e na literatura se destacam generalização da efervescência renovadora dos anos 20. Na literatura podemos observar atualizações do que se esboçara nos anos 20, resultando no enfraquecimento progressivo da literatura acadêmica, com a busca de simplificação ou coloquialismo, e a amplificação das 'literaturas regionais' à escala nacional. Na arquitetura, uma espécie de sanção oficial do modernismo correspondia à aceitação progressiva pelo gosto médio, a partir das primeiras residências traçadas por Warchavchik e Rino Levi. A Lúcio Costa e a Oscar Niemeyer foi confiado por Gustavo Capanema o projeto do edifício do ministério de Educação e Saúde, em cujas paredes Cândido Portinari pinta seus murais.


Portinari se apresenta aliás como o artista mais representativo dessa segunda fase do Modernismo. Primeiro artista moderno oriundo da Escola Nacional de Belas-Artes, ele receberá o maior número de encomendas governamentais, sendo o primeiro artista modernista a ser conhecido nacionalmente. Em 1930 o artista volta de viagem a Europa onde entra em contato com a arte moderna, tendendo rapidamente ao Modernismo. Aqui entre nós já existe caracterizado certo espaço moderno, ao qual a pintura de Portinari acrescenta os novos pontos de vista da pintura social. Afinal, “o artista deve educar o povo mostrando-se acessível a esse público que tem medo da arte pela ignorância, pela ausência de uma informação artística”, declara Portinari, para quem “nossos artistas precisam deixar suas torres de marfim, devem exercer uma forte ação social interessando-se pela educação do povo brasileiro”. O Modernismo vive momento de nova síntese, em que os elementos a considerar seriam o espaço pós-cubista, o nacionalismo e a arte social, resultando em pintura mais realista que busca uma comunicação mais imediata. Tal tendência realista não é, porém, exclusiva de nossa produção artística, sendo encontrada na Alemanha e na Rússia,  México e França, como reações diversas à subordinação do movimento Moderno à indústria de artigos de luxo, ao imaginário da máquina, à promessa da Revolução de Outubro.

A historiadora da arte Anna Teresa Fabris considera Portinari figura-símbolo da modernidade possível num país periférico, o que “parece ser uma grave falha para os partidários da modernidade a todo custo, guiados por critérios analíticos de derivação formalista”. Assim a historiadora alude  ao questionamento do caráter efetivamente moderno da pintura de Portinari, feito pelo artista e historiador da arte Carlos Zílio, que reconhece a não-compreensão da espacialidade cubista por parte de nosso pintor.




Sem entrar no mérito dessa discussão formal, gostaria de observar a coexistência de  modernismos entre nós. Por volta de 1938, Portinari realiza murais para o edifício do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Gustavo Capanema. “Pau-Brasil”, “Cacau” e “Borracha” retratam ciclos econômicos através do foco sobre o trabalhador - e não sobre o patrão -, sobre o negro - e não sobre o branco -, como representante da produção. O artista assume assim postura corrente entre artistas e escritores da época, que, aparentemente coaptados pelo Estado, desenvolvem, pela própria natureza de sua atividade, antagonismos objetivos, não meramente subjetivos, com relação à ordem estabelecida. Um ano antes, o pintor Alberto Guignard realiza, por exemplo, “Os noivos”, tela que sugere de modo muito mais sutil uma sociabilidade própria. O firme enquadramento logo anuncia o gênero do retrato junto ao desenho impecável, às cores encantadoras. Enquadramento, no entanto, “montado para ninguém, isto é, para alguém sem nome ou posição, sem sobrenome e – também – sem lugar no panteão dos tipos nacionais”, conforme observa Flávio Rezende de Carvalho em sua dissertação (PUC-Rio, 2007) sobre Guignard. Afinal, um fuzileiro é um fuzileiro, é sua farda. A noiva é a noiva do fuzileiro e pode-se percorrer infinitamente a trilha dessa especulação sem encontrar nada que  incontestavelmente confira um lugar ao casal. Um casal anônimo apresenta a forma característica que o exército (ou marinha) assumem aqui no Brasil: menos um feitio técnico-científico - exigido da organização exército, de uma eficácia diante do inimigo real ou potencial obriga a uma atualização permanente de seu aparato tecnológico -  e mais próximo da função de integrar socialmente os pobres e os negros.

Os noivos, 1937
58 X 48 cm, Museus Castro Maya

Como observa Carvalho, a partir de 1931, o pintor trabalhou como professor de desenho na Fundação Osório que vem a ser, na sua origem, uma instituição de amparo aos órfãos da Guerra do Paraguai. Guerra que vem a ser, aliás, o incidente decisivo na formação de um exército com características específicas, quais sejam, a de “uma força obrigada à modernização em permanente tensão com estruturas oligárquicas estabelecidas. Exército e Marinha – já que se trata de um fuzileiro – são produto dessa guerra e o país inteiro, mais intensamente desde a República, experimentará os efeitos da sua afirmação”. Nessa direção, poderíamos considerar, com Carvalho, o quadro como uma “alegoria ladinamente maldosa da 'conjuntura', uma fina observação de caráter sociológico, antropológico, histórico”. Mas tal constatação não basta para nos aproximarmos da questão de Guignard. Por que um artista como Guignard pintaria essa alegoria travestida de retrato ou vice-versa?

Sigamos então o raciocínio de Carvalho. Antes de qualquer consideração sobre seu significado, a pintura constitui um retrato. Esta sua intenção - problema artístico e filosófico que precede a experiência, e que desde o final do século XVIII passou a ser o problema central da teoria da arte, pois dela nasce a “forma”.  De que conjunto de intenções nasce a forma de Guignard? Por certo não se trata de um projeto nacional como o de Portinari. Afinal, vemos em “Os noivos” “um nacional que necessita de constante reafirmação, como se o Brasil e a cristandade estivessem sempre a um passo de sumir diante de nossos olhos”. Nela vemos um Brasil que necessita de marcas externas da sua identidade, e somente a partir dessa “carência revelada pela abundância”, podemos ligar o projeto de Guignard, sua intenção, a um sentido, ainda assim crítico, de nacionalidade. Definitivamente sua intenção não era a de educar o povo através da pintura, ou exaltar o tipo nacional.

Com perspicácia Carvalho observa algo que sempre senti em relação aos retratos de Guignard:  trata-se de pinturas que parecem sorrir – não são os personagens que sorriem para nós -, como que a compartilhar nossa nova condição de indivíduo. Nessa direção ao autor remete à questão do valor de culto e do valor de exposição de Walter Benjamin, que, por sua vez, remonta à gênese do processo artístico para afirmar que a arte nasceu como valor de culto, quando algumas obras eram então concebidas não para serem vistas, mas para fins mágicos ou religiosos. À medida que o valor de exposição foi-se afirmando, que as obras começaram a ser criadas para serem vistas, o valor de culto recuou, mas não sem luta. A fotografia foi o golpe de misericórdia, mas mesmo ela, ao menos no seu início, manteve um “culto da saudade, consagrado aos amores ausentes ou defuntos. A aura acena pela última vez na expressão fugaz de um rosto, nas antigas fotos” (Benjamin). Isso acontece porque aquela foto pertence a alguém cujo ente querido ou objeto amoroso está ali retratado. Se a foto pertencesse a outra pessoa, o indivíduo retratado não teria nenhum valor de culto para quem a observasse ou, ao menos, o teria bastante diminuído e transformado. Seria, no máximo, um culto ao passado. Essa é a característica dos retratos, que estabelecem essa relação pessoal – ou este valor de culto – entre seu proprietário e o retratado.

“É a esse repertório propriamente fotográfico que 'Os noivos' parece evocar. Todas as citações propriamente pictóricas já destacadas não estão ali de modo a tornar o quadro reativo a um sentido temporal contemporâneo de si mesmo. Quer dizer, o quadro não se aliena da sua condição histórica, antes anota e comenta, através da pintura, sua própria superação técnica. Ele permite entrever uma tentativa que amplia o significado do gênero, seja no anonimato dos personagens, seja na iconografia negativa do fundo. “Os noivos” parece ser o retrato de todos os retratos, isto é, a representação de um mundo em que os significados repousam no sujeito, seja ele quem for.”



Fernanda Lopes Torres é pesquisadora e historiadora da arte. Graduada em Desenho Industrial pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, tem mestrado e doutorado em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Atua hoje como pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) e professora do Instituto de Artes da UERJ, tendo publicado artigos em revistas universitárias e na revista Novo Estudos do CEBRAP.
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Imprensa alternativa - colaboração do leitor


O movimento de contracultura foi muito importante nos anos 60 e 70 e tomou diversas formas de expressão, entre as suas mais conhecidas, a do movimento hippie que tinha os ideais de paz e divulgava os livres costumes e uma crítica a sociedade capitalista ocidental da Guerra Fria que se via envolvida em uma grande corrida armamentista e em conflitos sangrentos como a Guerra do Vietnã e da Coréia.
A expressão brasileira do movimento de contracultura teve nos tropicalistas e nos novos baianos o seu grande denominador e proporcionou uma forte influência na música e no modo de vestir. Marcelo Pimenta, jornalista e nosso convidado de hoje, explica as repercussões desse movimento na imprensa brasileira.
Ana Maria Dietrich, historiadora, é coordenadora da Contemporartes- Revista de Difusão Cultural.

Jornalismo brasileiro na contracultura

Por Marcelo Pimenta e Silva
jornalista
 
          Durante o período histórico dos anos 60 e 70 a comunicação alternativa foi mais que um canal de expressão para os mais diversos grupos e movimentos sociais, serviu também para fomentar novas abordagens na cultura ocidental. A contracultura era uma corrente à margem da cultura tradicional e da própria comunicação feita pelo sistema mainstream e comercial dos grandes conglomerados de mídia. Para divulgar esse contexto, a comunicação alternativa abriu espaços com uma vontade de fazer guerrilha cultural através da palavra. Essa produção ficou conhecida como imprensa marginal ou “nanica” e tinha o ideal de traduzir a revolução de costumes que aflorava em diversas partes do globo, numa espécie de “antena parabólica” da juventude, muito antes do advento doméstico da internet.

             No Brasil, vivia-se a linha dura do regime militar, momento de repressão e de violências aos direitos sociais. O governo usava a máquina estatal para vender um país grande e rumo ao progresso. Gerava uma ilusão de que a ditadura era benéfica a todos os brasileiros. Os grandes jornais, revistas, emissoras de televisão e rádio viviam sob a égide da censura, porém muitos apoiavam descaradamente o governo pelo interesse financeiro que isso resultava. Vivia-se o milagre econômico, tempo propicio para a indústria cultural instalar-se no país e proporcionasse, através da comunicação comercial, o projeto de integração nacional do governo. Em um cotidiano além da situação política e social do que realmente acontecia no país, era vital uma resposta às “verdades” publicadas na grande imprensa, portanto assim ocorreu a proliferação de jornais com tiragem menor e com o tamanho de tablóides, em sua maioria, usando como “arma” a ironia, o humor e a crítica ferina ao país regido pelos militares.

             Para que fosse possível a produção de tais veículos, uma gama de jornalistas, artistas, intelectuais, hippies e doidões formavam equipes e botavam nas ruas uma espécie de grito contracultural ao modelo de país e de mundo em que viviam. Num mundo dividido pela Guerra Fria, além das ideologias e dos radicalismos tinha-se muita vontade de viver loucas utopias, de experimentar novas práticas e costumes, enfim de estabelecer um novo modelo do viver em sociedade. Por isso, nesse tempo de quebra de tabus e de contestação, a imprensa marginal foi a porta-voz de toda uma geração.

                Duas publicações de cultura e comportamento jovem se notabilizaram nesse período: Flor do Mal e Rolling Stone.


                 Como a maioria dos jornais alternativos, Flor do Mal teve uma periodicidade ínfima, uma tiragem pequena e um tratamento artesanal que seguia os princípios hippies de ir contra a domesticação do homem pelo uso da tecnologia. Uma frase de Baudelaire e a foto de uma menina chamada Ninon - segundo o jornal raptada em Belfort Roxo - estampavam a capa da primeira edição (foto Flor do Mal). Com as chamadas escritas na capa para que o leitor percorresse uma espécie de “caminho” Flor do Mal anunciava: “Isto não é um jornal para ser lido; é para ser curtido”. O jornal tinha como público cativo os “transbundados” – gíria dada pelos jovens envolvidos com política para aqueles que pertenciam ao movimento hippie tupiniquim e não aderia à luta armada – com seus temas comportamentais e ainda tabus, o impresso foi um fracasso além dos círculos alternativos.

             O projeto de Torquato Neto, em parceria com o jornalista Luis Carlos Maciel (conhecido como o “guru” do underground brasileiro), é o exemplo de jornal marginal que causou impacto pelos temas que abordava, bem como pela sua apresentação visual, mas como a maioria dos 150 jornais que circularam durante a ditadura militar não teve vida longa.

             A versão brasileira da Rolling Stone publicada em 1972 foi um dos primeiros veículos de comunicação impresso a discutir o feminismo, as drogas, o movimento ambientalista, a macrobiótica e, claro, o rock n’ roll, na época uma forma de contestação juvenil. Contudo, a revista nunca deixou de lado a música nacional ainda influenciada pela tropicália como atesta a capa da edição de número zero com Gal Costa. Na época, Gal era a musa dos hippies nacionais, os transbundados. A Rolling Stone também durou pouco. Versão pirata produzida por jornalistas como Luis Carlos Maciel, Ezequiel Neves, Ana Maria Bahiana, a revista circulou por quase dois anos sem nunca ter pagado os royalties para a matriz americana, conforme os jornalistas da revista, numa típica atitude contracultural de ir contra o sistema.


                 Nessas idas e vindas, o único veículo que sobreviveu com sucesso os anos românticos da contracultura foi o Pasquim, ironicamente o veículo entrou em decadência com o fim da ditadura militar e a redemocratização política. Num tempo “barra pesada” o lema “proibido proibir” fomentou uma produção ativa do jornalismo alternativo, produção de caráter utópico que influencia novas propostas de comunicação até os dias atuais.
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José Saramago e a arte da palavra




Queridos leitores, como vocês devem saber, no último dia 18 de junho, morreu na ilha de Lanzarote (Ilhas Canárias) um dos maiores escritores da Língua Portuguesa: José Saramago.



Este homem foi o primeiro e, até o momento, único escritor de Língua Portuguesa a receber o prêmio Nobel de Literatura, obtendo, desta forma, um amplo reconhecimento acerca de sua escrita. Saramago recebeu muitos outros prêmios, além de ter presenciado a adaptação de algumas de suas obras para o cinema, como é o caso de Ensaio sobre a cegueira (1995), filme este, dirigido pelo reconhecido cineasta brasileiro Fernando Meireles e de A Jangada de Pedra (1986), levada a cabo pelo realizador holandês George Sluizer.

Provindo de família pobre, José Saramago estudou somente até completar um curso técnico, com vistas a conseguir um emprego e ajudar à família. O contato com literatura e leitura de obras literárias acontecia após Saramago chegar do trabalho e se dirigir à Biblioteca Nacional de Lisboa.

Alguns estudiosos da obra deste escritor, como Carlos Reis, dividem as obras saramaguianas em três fases: a primeira delas compreende o período da publicação de Terra de Pecado em 1947 até o ano de 1977 no qual é lançado Manual de Pintura e Caligrafia. Entre a publicação de uma obra e outra, houve uma lacuna produtiva de romances, a qual muitos atribuem uma espécie de preparação, amadurecimento de escrita. A segunda fase compreende Manual de Pintura e Caligrafia (1977) e vai até Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Esta fase é marcada, principalmente, por um caráter questionador da História, das “verdades” históricas difundidas pelo Estado e pela Igreja. Os romances que compreendem esta fase possuem uma escrita que funciona como critica social e, além disto, a característica marcante de Saramago nestas obras é “substituir o que foi pelo que poderia ter sido” (SARAMAGO, 2002, p. 14).

A chamada terceira fase se inicia com a publicação de Ensaio sobre a cegueira (1995) e compreende os romances publicados até a atualidade. Nestas publicações, José Saramago iniciou um novo ciclo de escrita, no qual predomina o caráter reflexivo em relação à vida humana, às relações que o homem estabeleceu entre si e com o mundo que o rodeia.



É importante ressaltar que este autor, em seus romances, trouxe à tona discussões importantíssimas acerca da História de Portugal, da verdade histórica, questionou entidades como o Estado e Igreja, refletiu sobre a condição do homem. Enfim, foi um intelectual de alta relevância no mundo moderno e de grande atuação na vida social e política de seu país.

Dentre os romances saramaguianos que li, recomendo a vocês alguns, com os quais poderão usufruir de toda genialidade criativa do Nobel português, como Memorial do Convento (1982), O ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989), Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a Cegueira (1995), As Intermitências da Morte (2005), A viagem do Elefante (2008), Caim (2009).

Falar acerca da escrita de Saramago não é nada fácil, devido à vasta produção deste autor, além da variada gama de assuntos retratados. No entanto, ficam grafadas acima minhas singelas considerações sobre os escritos deste artista, além de uma breve homenagem.










Rodrigo C. M. Machado é Graduando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa e, neste momento, pesquisa a representação dos corpos na poesia de António Botto.
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O Poeta Fernando Righi

Um Mineiro Lítero-Musical
por Altair de Oliveira


Conheci o Fernando Righi em Belo Horizonte, na época do lançamento de meu último livro lá. Para mim que já conhecia um pouco da obra do poeta, foi uma grande oportunidade de conversarmos e de saber mais sobre ele e sobre suas atividades literárias.

Geminiano e poeta pré-tenso como eu, Fernando inicialmente pareceu-me tímido ao compartilhar comigo a primeira cerveja. Sem que percebêssemos, logo depois já estávamos com a boca cheia de palavras.

Fernando trabalha como jornalista, mas esteve envolvido com a música desde a adolescência, época em que decidiu participar de bandas de rock para trair sua vocação de infância de um dia tornar-se um astrônomo. Mas durante todo o tempo ele esteve disfarçadamente garimpando poemas. Com estes reunidos e publicados recentemente, cometeu uma espécie de traição à sua primeira traição. Um destraidor distraído? Ironicamente ele confessou-me: “Sabe, eu decidi publicar meus poemas para ganhar dinheiro, já que como jornalista ou como roqueiro eu não tive chances...”

Criado na atmosfera de uma romântica e cultural Beagá (a mesma que nos conta seus grandes escritores como Fernando Sabino, Roberto Drummond, Ziraldo e Oswaldo França Junior ), numa época de transformações que permitiram que surgissem movimentos importantes como “O Clube da Esquina”, o poeta pode participar de uma infância urbana e rica em referências às brincadeiras de ruas, de quintais, de leituras e cantigas e, mais tarde, ser iniciado na vida boêmia da cidade. Com seus botecos e seus tragos de boa música, Belo Horizonte é hoje chamada de “capital dos botecos” – palcos também de grande manifestações culturais - daí saíram grandes grupos musicais como “Sepultura”, “Skank”, “J-Quest”, “Pato Fu”, etc. A poesia de Fernando Righi não ficou imune a este clima, ela é parte desta modernidade urbana mineira, que é sem dúvida uma marcante característica cultural brasileira dos nossos dias.

Com uma forte musicalidade, a poesia de Fernando descreve o cotidiano urbano desta cidade que, apesar de moderna (com todas boas e más características de nossas metrópoles), traz a nostalgia de uma cidade de um ambiente manso e promissor onde infâncias felizes podiam ser muito bem desenhadas, antes de caírem na vida. Mas fala também das transformações que vieram depois. O seu livro “Cinco Impressões de meu tempo”, dividido em partes (A Cidade; Haicais para caber em pequenos apartamentos; As Cores e os dias; Você e eu: todos nós e A Poesia) é uma espécie de documentário poético destas transformações. E é também um testemunho de que a poesia pode ser preservada, ainda que em pequenos e poucos frascos, guardados e resguardados nos nossos apertados apartamentos.

Sobre o Poeta.

Nascido numa fria sexta-feira de junho de 1964 em Belo Horizonte, Fernando Righi Marco, como um geminiano típico, convive muito bem com as características extrovertidas do povo italiano, do qual é descendente, e também com a introspecção própria povo mineiro. Não foi à-toa que escolheu o discreto contrabaixo como instrumento de ofício nas dezenas de bandas em que atua desde a década de 1980, época em que também se iniciou no jornalismo.

O trabalho coletivo na música e a construção de imagens alheias nas assessorias de imprensa, entretanto, não lhe permitem o mesmo prazer que a poesia. “Na poesia posso ser eu mesmo, quebrando as regras ou acolhendo o saudosismo das rimas. Por meio do jogo de palavras, cada qual de meus contraditórios defende sua crença, seu valor e seu ponto-de-vista sem temer o maldito politicamente correto que nos assola”, diz.

Suas primeiras e marcantes influências são das mais variadas: na biblioteca legada pelo pai, despertou para a força das palavras de Castros Alves, Bandeira e Augusto dos Anjos; na coleção de discos dos irmãos, enxergou a transcendência dos Beatles e de Beethoven; na televisão, digeriu as ilusões dos seriados e filmes; e, na cozinha, compreendeu a musicalidade dos velhos sucessos bregas e caipira. “Tudo isso se amiga na minha alma e minha poesia, às vezes, costura uma conexão dessas coisas tantas”, resume

No entanto, há uma unidade em sua obra poética formada pelos publicados “Estrelas nos olhos, vaga-lumes na cabeça” (2005), “Cinco Impressão de meu Tempo” (2008) e “Bestiário Mínimo & Outras Poesofias (2009) e pelos milhares poemas inéditos que ainda abarrotam suas gavetas — a morte, a vida, a cor, a inadequação e a contemporaneidade. Sobre o lançamento de “Cinco Impressões de Meu Tempo”, registrava o crítico Alécio Cunha: “O ofício da poesia ganha o esmalte da crônica, não a frágil e iluminada substância vítrea, mas algo fluído (...) que navega no sangue”


Fernando Righi, por ele mesmo

"Aos 45 anos, já fiz de tudo nesta vida: comerciante, bebum profissional, astrôlogo e, atualmente, caço o sentido na vida depois que Gilmau Mendes determinou que todo mundo pode ser jornalista. Mesmo assim, sou um desses pobres coitados abnegados com especialização em marketing político e também músico, exercendo ambas as atividades ativamente desde os anos oitenta. Sem vocação para poeta maldito ou honras póstumas estou na lida para divulgar meus trabalhos poéticos: "Estrelas nos Ohos, vaga-lumes na cabeça" (2005), "Cinco Impressões de Meu Tempo" (2008) e "Bestiário Mínimo & Outras Poesofias" (2009), todos trabalhos independentes com um tema recorrente — a memória, a contemporaneidade e a dialética da vida."



Os Poemas




CABEÇA DE VIDRO -I-

Cavo nas fundas cavas de meu crânio
e encontro esqueletos esquecidos
rostos descarnados de gente que amei
sempre com o mesmo sorriso cínico.

Escavo nestas minhas fundas cavas
cheias de sangue, história, terra, pó
desenterro muitos tesouros perdidos
moedas valiosa à prova de ladrões

Adentro em grutas, reviro pensamentos
tantos eus soterrados, cheios de gemidos
escuros cantos onde germina meu futuro
às vezes são o nada, às vezes são o tudo.



CABEÇA DE VIDRO -II-

Cabeça de vidro, crânio de cristal
prisma de tantas luzes, sobrenatural
Lá estão todos mundos do universo
estão princípio e fim, o Verbo, o verso!


Fernando Righi, In: "Estrelas nos Olhos, Vaga-lumes na Cabeça”


3 TOQUES NA MADEIRA

Temo os dias tranquilos
prelúdios d' alguma tragédia
esse passear dos dias perfeitos
que desconsidera a brida e a rédea

Temo o brilhar dos sorrisos
abertos, seguros, alvíssimos
como o diabo encarnando em homens
ladrões e soldados competentíssimos.

Temo a passividade dos domingos
sempre a explodir em violência
dramas familiares, términos de amor
rodoviárias cheias de complacências

Temo - Um temor profundo
Incerto... premonição de invejas
recaindo sobre entregadores de pizza
famílias de ungidos a sair das igrejas.


Fernando Righi, In: "Estrelas nos Olhos, Vaga-lumes na Cabeça”

***

MINHAS MINAS

Minas sem mar - minas em mim
rupestre a rodar, de cavera em caverna
de montanha em montanha sem fim.

E mina a vontade que acorda para dentro
e tem o seu sentido de liberdade eterna
guardada a sete chaves da ação do tempo.

Minas sem mar nunca dantes navegado
no sobe e desce de tanta ladeira
de polidez e sombra no casarão mofado.

De janelas que encerram o calado berro
entre uma missa e a infame sexta-feira
de pedras no caminho, de ouro e de ferro.

Sou minas de rotinas, riquezas e ruínas.


Fernando Righi, In: "Cinco Impressões de meu Tempo”.


***



POEMA ELÉTRICO

A vida na cidade
tão cheia de ansiedade
como se o extraordinário
fosse insurgir da esquina
contra o dragão da maldade.

Um correr perdulário
movido a cafeína e gasolina
transbordando a necessidade
de surgir a cada esquina
a tão sonhada felicidade.

A vida na cidade
tem seu quê de saudade
dos bons tempos idos
que jamais foram vividos
por nossa urgente precariedade.



Fernando Righi: "Cinco Impressões de meu Tempo".



Para ler mais: http://www.germinaliteratura.com.br/2009/fernando_righi.htm
Site da banda Low-Fi: http://www.low-fi.com.br/
Contato com o poeta: ferrighi@hotmail.com



Ilustrações: 1: o poeta Fernando Righi; 2- o roqueiro Fernando Righi; 3- Capas dos livros do poeta; 4- "Noturna Elétrica", do pintor mineiro Gilberto Abreu.


Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve às segundas-feiras no ContemporARTES. Contará com a colaboração de Marilda Confortin (Sul), Rodolpho Saraiva (RJ / Leste) e Patrícia Amaral (SP/Centro Sul).
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Drops Acadêmicos


Na coluna Drops Cultural, acreditamos intensamente na pluralidade que a palavra cultura pode representar. Por isso, as dicas não se restringem a movimentos ou expressões específicas, pode ser cinema, música ou artes plásticas, a cultura está em tudo e também, e muito bem representada, na academia.

Pensando assim, a primeira dica é sobre o III Congresso de Letras, Artes e Cultura da UFSJ. O evento que tem como tema “Representações culturais e suas linguagens”, será realizado de 23 a 27 de agosto de 2010, na UFSJ, São João del-Rei – MG. As propostas de comunicações, minicursos e workshops poderão ser enviadas até 01 de julho de 2010. Os resumos e propostas de atividades serão recebidos exclusivamente por e-mail, para o seguinte endereço eletrônico: ufsj.iiicongressodelet.art.ecult@gmail.com


Outro dica é o lançamento do livro da Editora Universidade Sagrado Coração -EDUSC “Conflitos do Capital: Light versus CBEE na formação do capitalismo brasileiro (1898-1927)”, do autor Alexandre Maccchione Saes. O lançamento acontece no dia 23 de junho às 19 h.
Local: Livraria Cultura – Shopping Villa Lobos/SP

E para completar o Drops de hoje, Palestra com Daphne Patai, da Universidade de Massachussetts. Autora de grandes trabalhos no campo da história oral. No evento, será apresentado o livro de ensaios “História oral, feminismo e política”, recém publicado no Brasil.



Ana Paula Nunes é jornalista, Pós-graduanda em Mídia, Informação e Cultura pela Universidade de São Paulo/USP. Coordenadora de Comunicação da Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades. Escreve aos domingos no ContemporArtes.
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